O interrompedor

O INTERROMPEDOR
Miguel Carqueija

Por uma rua estranhamente vazia (não tão estranhamente porque isso é clichê das histórias de super-heróis) o Faísca Azul corria desabaladamente atrás de um sujeito de roupa preta com capa esvoaçante e um capuz negro encobrindo o seu rosto. Súbito o encapuzado enveredou por um inesperado beco estreito e imundo. Com sua capa azul também sacudindo ao vento o Faísca Azul foi atrás e afinal terminaram os dois num larguinho sem saída, cercado por velhos prédios de rebocos caídos e tijolos à mostra.
O outro se voltou.
— Então, Faísca Azul, parece que chegou a hora de medirmos os nossos poderes.
— Não sabe como esperei essa hora, Vilão Sinistro. A sua carreira de crimes e planos malignos termina hoje!
— Isso é o que veremos, seu super-herói de araque. Acha mesmo que vai poder ganhar de um super-vilão poderoso como eu?
— Eu farei o melhor que puder.
Assim dizendo o Faísca Azul, espalmando as mãos, já fazia saírem faíscas de seus dedos. O Vilão Sinistro, por sua vez, empunhou uma varinha com uma caveira na ponta. Por alguns instantes os dois se mediram com o olhar, atentos a qualquer brecha do adversário.
Nesse momento porém ouviram-se passos rápidos de sapatos de couro e um sujeitinho de aspecto insignificante e absolutamente comum, até com paletó surrado e gravata encardida, apareceu diante deles e deixou escapar uma exclamação de surpresa:
— O que vocês estão fazendo aqui?
— Íamos lhe fazer a mesma pergunta — disse o Faísca Azul.
— Seu idiota, não está vendo que nós vamos lutar até a morte?
— Como eu poderia saber? Nem sei quem são vocês!
Nada que ele houvesse dito poderia soar mais desmoralizante para um super-herói ou um super-vilão.
— Como assim? Como ousa não nos conhecer? Não está vendo que eu sou o Vilão Sinistro? Olha só o meu traje!
— Bem, vocês dois estão parecendo mais é fantasias de carnaval!
O Faísca Azul resolveu esclarecer de vez a questão.
— Escuta aqui, cara: eu sou o Faísca Azul, sou o super-herói desta região e, com franqueza, você está quebrando todas as regras da situação!
— Como posso estar quebrando regras? Isso aqui não é a via pública?
— Será que você não entende? Quando super-heróis e super-vilões brigam, não pode aparecer mais ninguém que não seja protagonista! Nem na rua, nem no beco, e nem pode aparecer gente nas janelas, como pode ver estão todas fechadas! A polícia muito menos aparece! Nós podemos arrebentar com carros e com prédios, não importa! O regulamento das nossas histórias determina que pessoas estranhas ao roteiro não podem aparecer intempestivamente!
— Não leve a mal, mas eu não entrei nesse beco imundo só por diversão ou porque goste de vir aqui! E não tenho nada a ver com o problema entre vocês dois!
— O que você veio fazer aqui, afinal?
— Mijar, é claro.
— O que?
— Minha bexiga está cheia e estou longe de casa. Não ia fazer no poste lá na avenida, podia ser preso. Aqui é mais discreto. Aliás vocês dois estão me atrapalhando.
— Não posso acreditar! — rosnou o Vilão Sinistro. — Você interrompe um acerto de contas antológico entre vilão e herói só porque teve vontade...
— E você acha pouco, seu urubu? Não sabe o que é estar com a bexiga quase arrebentando? Acho que eu tomei muita cerveja. E eu preciso que vocês dois saiam daqui o quanto antes. É meio constrangedor urinar na frente dos outros.
— Isso nunca me aconteceu antes... — gemeu o Faísca Azul.
— Chega, Faísca Azul. Vamos embora.
— Mas, Vilão Sinistro, então como fica o nosso entrevero...
— Já lhe digo. Não está vendo que esse sujeitinho aí é o próprio Homem Comum Prosaico? Pelas regras ele não tinha que aparecer nessa hora e nesse lugar, portanto já estragou tudo. Deixa ele fazer o que tem que fazer e nós vamos embora e combinamos outra coisa.
— Está bem, fica para outra ocasião. E você, seu intrometido, saiba que eu detesto os homens comuns e prosaicos! Vocês só atrapalham!
— Ora, Faísca Azul, vá se catar! Vocês é que estão me atrapalhando! Tratem de sair logo do beco, antes que eu mije nas calças!
— Vamos — insistiu o Vilão Sinistro. — Sou um facínora elegante e educado, não aguento essa vulgaridade.
E lá se foram os dois abraçados, discutindo sobre em qual bar ou lanchonete iriam tomas umas cervejas e combinar algum outro dia para o combate de vida ou morte que deveriam travar.
Certificando-se de que os dois tinham efetivamente se retirado, o Homem Comum Prosaico suspirou de alívio:
— Até que enfim! Sujeitinhos abusados! Não se tem mais sossego nem para mijar num beco?

Rio de Janeiro, 6 de novembro de 2020.


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Miguel Carqueija
Enviado por Miguel Carqueija em 07/11/2020
Reeditado em 07/11/2020
Código do texto: T7105844
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