O Costa

“De frente pra proa, o lado em que fica o coração é o bombordo...”

Nos anos 60 iniciaram-se as construções dos muitos tortos edifícios na cidade de Santos. As construções atendiam a demanda da burguesia paulistana, que desprovida de praias na capital, queriam usufruir da areia e do mar sem abrir mão das comodidades que tanto valorizavam em São Paulo. Com esse deslocamento de construções e gente, o antigo centro próximo ao porto foi sendo abandonado e hoje, pode-se ver os vários casarões centenários, outrora símbolos da prosperidade do café, imersos na mais profunda decadência e abandono.

Neste centro esquecido, pululam os bares de má fama, como o Costa, boteco que ocupa os restos de um antigo casarão que fora construído por um tal Mister Hardgrave, inglês que atuava na corretagem do café. O Costa tem umas quantas janelas que são conservadas sempre abertas para tentar aliviar o calor que se faz por vezes sufocante, a fachada bonita com umas dezenas de azulejos gravados com desenhos azuis que remetiam a maçonaria - Hardgrave era companheiro – , um par de colunas jônicas em piores condições que suas semelhantes atenienses de três mil anos atrás, que ladeiam a entrada, dão a sensação de que entrar no Costa é como entrar em um mundo aparte daquele que compõe a medíocre realidade.

Apesar de em sua superfície já não ser nem sombra do que fora, o casarão quase templo convertido em boteco, conserva incólume sua alma – algumas casas têm alma – alma de magnânima nobreza que acaba por invadir as almas menores dos bêbados frequentadores, inculcando-lhes certos ares de iluminados aristocratas. Alguém que passe pelo lugar no início da noite, acreditará que o boteco do Costa é mais um clube de gentlemen, onde se bebe whisky e fumam-se cubanos.

No Costa não há sinuca, dominó, carteado: os homens, assim como os gregos de um tempo remoto, dedicam-se sobretudo a beber e a divina arte da conversação. E fazem as duas atividades com igual zelo, pois bebem muito e conversam sobre tudo, assuntos triviais e profundas conjecturas filosóficas recebendo o mesmo tratamento. Houve apenas um único que destoou dos entusiastas conversadores: Antônio, um dos mais idosos frequentadores, que não sendo homem dado a leituras, exceto a Gazeta Esportiva onde se informava sobre o Santos, preferia o silêncio diante de assuntos que lhe fossem desconhecidos. Um lacônico inveterado diria alguns, um sábio diria outros. Talvez Antônio fosse mesmo um sábio, mas seu silêncio se esvaecia por completo quando o assunto era o mar. Quando a quase infinita imensidão de águas que rodeava a cidade entrava em cena, Antônio agarrava a palavra, meti-a no bolso esquerdo da calça e não mais a soltava. Iniciava um longo monólogo sobre as maravilhas e perigos do mar, e cedo ou tarde, gabava-se com disfarçado pudor de um grande feito seu:

-Eu, quando jovem, nadei ida e volta toda a baía de Santos – e dizia isso levantado os braços, que se antes serviram de morada a imponentes músculos, agora exibiam tão somente um monte de carnes flácidas e cinzentas.

Seu Costa, proprietário do boteco, com os cotovelados cravados no balcão, fazia alguma pilhéria colocando em dúvida a história do velho, e este, sem perder tempo, respondia-lhe

com áspera veemência:

-Quem não acredita que percorri a baia de Santos ida e volta a nado – o percurso era mais ou menos de 25 milhas - vá a Ponta da Praia, perto do mercado de peixes, e lá, sim, lá estará minha estátua que serve de prova a façanha!

Quase ninguém fora certificar-se da existência da tal estátua, não porque acreditavam em Antônio, mas sim porque todos acreditavam ser simples lorota de velho dado a cachaça e ir procurar o monumento seria trabalho de um néscio. Disse quase ninguém, pois o único que visitava diariamente a estátua era o próprio velho Antônio, pois ele mesmo desconfiava que sua façanha fosse algo de irreal, mera travessura de uma memória já gasta. E como poderia ser diferente? Qualquer um que olhasse Antônio e a estátua lado a lado custaria muito em acreditar que homem e homenageado fossem de fato a mesma pessoa.

A estátua, sobre um pedestal de mármore, era a figura de um homem - Antônio - com mais de trinta e três metros em aço e bronze, com a caixa torácica de proporções titânicas, tinha os braços musculosos abertos, o direito direcionado ao oriente, o esquerdo ao ocidente, formando um tipo de cruz latina que parecia triunfar sobre a terra e sobre o oceano. A estátua em seus princípios fora dourada, porém, com o tempo, foi adquirindo uma coloração verde-azulada como o mar, o mar que estava coalhado de pequenos barcos que faziam repetidamente a travessia entre Santos e o Guarujá. Antônio, por sua vez, aos pés da estátua, era tão somente uma figura decrépita expiando uma vida amargada e sabendo aproximar-se o fim da vida, pois era mortal diferente de seu eu de bronze, preocupava-se em encontrar alguma sepultura para quando a vida lhe abondasse. A vida o abandonaria como a juventude o fizera. Quanto tempo ainda teria? As horas foram passando, os ciclistas que rasgavam a ciclovia iam rareando, a noite chegava e Antônio não saia do lado da estátua, enquanto comtemplava a baia poluída. Fora inundado por uma enxurrada de pensamentos dos quais não podia afastar-se, sendo como que arrastado por forte correnteza: Quem nadou por toda a baía? Foi essa porcaria de estatua? Foi minha juventude? Não, não foi o monte de bronze, tampouco foi minha juventude, quem nadou, ida e volta, toda a baía de Santos fui EU, foi Antônio e tão somente Antônio. Eu e não ele sou o verdadeiro herói.

O velho despiu-se lentamente, e quando a escuridão, por fim, tomou toda a terra, Antônio saltou na água gelada. Iria nadar toda a baía de Santos como fizera há cinco décadas, e no inicio nadava com braçadas longas, ganhando metros e metros. O mar estava iluminado, talvez mais iluminado que a própria cidade que vista desde a água, parecia uma árvore de natal toda colorida, como as que se vendem em atacadistas. E continuou nadando, em solidão a que lhe chamava paz, afastava-se cada vez mais do porto, e a enorme estátua que o aterrorizava parecia algo pequeno e insignificante. Sentiu-se ser um peixe, e como peixe deslizava pela água. Mas Antônio não era peixe, nem pessoa, seu corpo foi pouco a pouco se diluindo no mar, até que homem e água se fizeram uma só única substância. Antônio não encontrara sepultura, pois acabava por tornara-se parte do infinito em que consiste a natureza. Antônio fez-se mar.

No Costa, desconhecendo incrível aventura da qual Antônio fora partícipe, deram-no por morto e não economizaram palavras para homenagear o velho lobo do mar.

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Esteban Donato Ardanuy
Enviado por Esteban Donato Ardanuy em 06/11/2020
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