308 - Encantadora de Serpentes
Admirava-se com o pânico que via nos outros quando aparecia. Temiam-no por ter, sempre, algo de verdadeiramente inusitado nos bolsos dos calções. Enquanto os outros rapazes usavam pedras e fisga para atirar a tudo o que mexesse, ele privava de modo sereno com répteis, pássaros ou tartarugas. Era como se entendesse os bichos numa metalinguagem que só ele usava. Como aprendeu? Não sabia. A regra era gostar muito do que amedrontava o resto do pessoal. Aranhas ou cobras, lagartixas muitas vezes sem cauda. Aprenderia que o susto é que as fazia largar parte do corpo para o predador. No caso salvava-se o principal porque, na vida de uma lagartixa, caudas havia várias e estar provisoriamente sem ela nem era vergonha, pensava. Olhava com intensidade, tocava muito leve, era lento o suficiente para estabelecer diálogo com o animal do momento. Andava sempre sozinho, falava pouco e até o que dizia era excessivo porque não interessava a ninguém. Na aula ficava na última carteira mas sabia sempre o que os demais erravam. Não era brilhante mas passava de ano com conhecimentos firmes. Um dia viu as pernas cheias de pelos, o buço mais afirmativo, o corpo a ganhar jeito de homem e as ideias a tomarem nova forma dentro do que no mundo o cativava. Ela olhava-o e ele não via. Ela seguia-o e ele não dava por isso, tentou, em vão, meter conversa mas o olhar dele não parava por ali. Como continuasse a perceber que gostava dele, Margarida, aconselhada por si mesma, passou a dedicar-se ao que tanto o fascinava. Queria entender, entrar no mesmo universo, partilhar o que havia de especial e tão raro na sua vida. Foi por isso que lhe perguntou o que queria vir a ser, foi por isso que, igualmente inquirida, respondeu fitando-o intensamente: - encantadora de serpentes.