305 - O Anjo
Desde então chamavam-lhe Anjo. Quando o Mestre finalizou a escultura e a entregou para um jazigo de combatentes viram todos quem serviu de modelo para a figura angelical que se dobrava para uma taça de rosas em mármore. Tinha um fantástico movimento de asas e o corpo nu. Todos os dias, depois das aulas, Ricardo posava. Primeiro para os esboços que o escultor levava ao cliente, depois, só a cabeça que figurava noutras maquetas e, por fim, a figura inteira, nua, quase clássica. Ganhava pouco pelo trabalho de ficar horas a fio a olhar para nada e imóvel para que o Professor, manobrando tecos e arames, o copiasse para o barro. Falava para pedir outra pose, mexia-lhe para corrigir a postura e, ao fim de cada sessão a nota era-lhe entregue sem comentários. Isto durou o último período escolar até que um dia, o canteiro veio para passar a mármore a totalidade do trabalho levando-o para lugar misterioso. Anjo, acabou por se formar em arquitectura e ninguém recordava o seu nome. Ainda posou para outros trabalhos porque em tempos difíceis, era bom ganhar um extra para mostrar o corpo e ficar horas a olhar para onde lhe pediam. Quando recebeu convite para a exposição do antigo professor aceitou com prazer e apareceu. Lá estavam as maquetas, os esboços emoldurados, os gessos e, ao fundo da Sala, uma cópia da cabeça do anjo, mármore de Vila Viçosa, polido com esmero. Ricardo vagueou com a taça de espumante na mão e não conheceu ninguém além do Escultor ali homenageado. Ainda lhe fez um aceno com a cabeça antes de sair mas o Professor não o reconheceu ou, como sempre fazia, poupava nas palavras e tudo o que via nele ou nos outros modelos, eram formas. Quando saiu, reviu, demorado, a cabeça de mármore, despejou-lhe o resto do espumante e partiu com estrondo a taça.