304 - O Arranjar de Pés
- Por aqui, disse. Em breve entraram num cubículo sem janelas no interior da Farmácia. Era ali que faziam medição de glicose, ministravam vacinas e davam injecções. Quando era dia de arranjar os pés o cliente a seguir esperava que acabasse o arranjo das unhas de quem, com hora marcada, se estendia na marquesa e colocava os pés para que ela enfrentasse calos, unhas grossas e fungos. Trabalhava com atenção e cuidado. Era hábil e prudente o que nunca inibia um ai mais alto ou a tentativa de retirar-lhe das mãos o pé em causa. O primeiro gesto era o passeio com a mão metida em luva de borracha para ler o estado da pele, a existência de espessamentos e rachaduras, a ferocidade de algumas unhas em pés nem sempre delicados. - Descalce-se e deite-se na marquesa. Era sempre o mesmo ritual. Borrifado o pé com álcool, desbastadas as unhas, desencravadas as que doíam, eliminadas acumulações de células mortas e demais porcaria à volta e na inserção no dedo, gotejado um óleo aromático e massajado o pé com firme suavidade, ela dava por findo o trabalho. Naquele dia, porém, não foi assim. Deitado, sem sapatos nem peúgas, o homem aguardou que ela começasse. Quando achou tempo excessivo, ergueu a cabeça e viu-a chorar. Lágrimas fartas que logo lhe sujaram de negro a manga da bata. Encolhido sem saber o que fazer ou dizer, ele continuou a aguardar sentindo já os pés frios e o clima tenso. – Ele nunca deveria ter feito o que fez comigo, disse no meio de soluços esmurrando a marquesa perto da unha problemática. Olhe, o senhor desculpe mas hoje não estou com cabeça para trabalhar. Arrumou os materiais, despiu a bata, sacudiu a mão numa despedida e saiu furiosa com rumo provavelmente determinado. O cliente, calçou-se e saiu manco como quando chegara.