Na calada da noite
Havia sido uma batida o que a havia acordado? Sentou-se assustada na cama e olhou ao redor, na escuridão do quarto. Silêncio. Tomando coragem, estendeu a mão e apertou o interruptor do abajur sobre a mesinha de cabeceira. Quando a luz amarelada encheu o ambiente, ela ouviu o som pela segunda vez: era mesmo uma pancada, e vinha da cozinha. Afastou as cobertas, e girou o corpo, encaixando os pés nas pantufas ao lado da cama. Depois, apanhou o telefone sob o abajur e ligou para a polícia.
- Sra. Gideon? Em que posso ajudá-la? - Indagou a atendente do posto policial.
- Aconteceu de novo; tem alguém na minha cozinha - cochichou ela. - E acho que está preparando uma refeição, pelo barulho que está fazendo...
As pancadas na cozinha continuavam. Aparentemente, alguém estava usando um cutelo para cortar alguma coisa - que pelo visto estava congelada.
- A senhora está em segurança, Sra. Gideon?
- Estou trancada no meu quarto - sussurrou ela. - Mas se usarem esse cutelo aqui na porta...
- Estamos mandando uma viatura - informou a atendente. - Em cinco minutos estarão aí.
- Espero que sim - replicou, antes de desligar.
Na cozinha, o barulho era agora de panelas se chocando, como se houvesse alguma dúvida sobre qual delas usar na receita. A maior, provavelmente, inferiu. Finalmente, o som pelo qual ela estava aguardando: a campainha da porta da frente, sinal de que a polícia havia chegado. Após alguns instantes, ouviu uma conversa indistinta, sinal de que a porta fora aberta. E depois, duas batidas na porta do quarto.
- Sra. Gideon? É a polícia - disse uma voz de homem. - A senhora está bem?
- Sim, eu estou bem. Conseguiram prendê-lo?
- Já está na viatura. Vamos colocar um inibidor de proximidade nele, para que não tente voltar.
- É bom mesmo. Perturba o meu sono e dá trabalho para vocês.
- É o nosso trabalho, Sra. Gideon, não se preocupe; não vai lhe causar mais problemas.
- Obrigada, policial. Por favor, batam a porta quando sairem; só abre sem chave pelo lado de dentro.
- Faremos isso, Sra. Gideon. Tenha um bom fim de noite.
- Igualmente.
Esperou que a porta da rua batesse e que o som do motor da viatura se afastasse. Finalmente, animou-se a abrir a porta do quarto e olhou para o fim do corredor, mergulhado na obscuridade que levava até a cozinha. Acendeu a luz e caminhou até lá.
Tudo estava impecavelmente arrumado, como deixara antes de ir dormir. As panelas em sua prateleira, os utensílios pendurados no suporte da parede, as facas enfiadas no cepo de madeira sobre a bancada da pia. Ela pegou um copo e o encheu na torneira; bebeu em longos goles.
- Você não mora mais nesta casa, Harold - comentou, cotovelos apoiados na bancada. - Nem mesmo quando estava vivo eu gostava da bagunça que fazia nessa cozinha, imagine agora...
Com semblante melancólico, pôs o copo vazio dentro da pia, apagou a luz, e foi dormir.
- [17-10-2020]