283 - Os Medos
Era a mais nova de muitos irmãos. O pai trabalhava de oleiro e a mãe fazia de tudo para equilibrar a casa. Sem rádio nem televisão o povo vivia de contos, casos, notícias, boatos, superstições. Reunida a família para o caldo de couves e para as batatas com o que houvesse ou sem mais nada, alguns ficavam á roda da lareira e ali havia sempre coisas para dizer e escutar. Ela raras vezes tinha ocasião de ser ouvida mas registava, com grande cuidado, as incríveis coisas que preenchiam a vida. Crendices, medos, casos terríveis com mortes ou assombrações eram conversas seguidas com temor e espanto. E ela, Rosa, tinha pesadelos. Nos seus sonhos intranquilos, havia muita gente com venta de porco, vários braços, olhos esbugalhados de pavor ou admirada surpresa. Tinham os monstros línguas enormes e vermelhas, dentes afiados, dedos treinados para estripar ventres ou até retirar dos incautos a alma como se fosse a esvaziar um balão. Eram os santos demoníacos, os corpos híbridos de carneiro ou lagarto, os amuletos variados. Quando ia com o pai para ajudar na olaria, ficava a mexer no barro, a fazer bonecos, a dar existência aos habitantes dos seus sonhos de criança tímida. Depois, ordenados pela força intrínseca que ganhavam, secavam até o pai os levar ao forno para lhe agradar. Um dia levou os bonecos à feira e achou quem os comprasse. Há sempre quem não resista a uma pechincha, quem tenha mau gosto, quem ame figuras estranhas sem razão. O certo é que Rosa voltou a fazer bonecos, agora vidrados e coloridos também. Cresceu, fez vida e morreu como os demais da sua terra. Conheciam-na como a Rosa que fazia pesadelos de barro.