263 - Poleiro de Águia
Da sacada do seu quinto andar pombalino via o coração de Lisboa, uma boa nesga do Tejo, a Rua Áurea, o Rossio. Pagava pouco para se compensar da falta de elevadores, de luz na escada, da poluição que a fazia assoar negro sempre que o nariz comichava. Alugou aquele quarto por causa das vistas, da centralidade, do bom que era sentir-se águia depois de mourejar o dia inteiro. O pior eram as noites de sexta e sábado. Vinham pela rua abaixo e cantavam as bebedeiras, pontapeavam os sacos com lixo, ficavam deitados no passeio a gemer cantigas que chegavam para a acordar. Ficava furiosa mas, ao mesmo tempo, excitada. Jogava-lhes balões com água, falhava a pontaria, corrigia o ângulo e, quando não atingia o barulhento, molhava-o. Depois divertia-se com os protestos da vítima que não sabia de onde lhe viera o tiro. Praguejavam todos, faziam gestos obscenos para o alto, sacudiam a água e tomavam o rumo dos barcos para a outra banda. Tornou-se tão divertido molhar os notívagos que nem esperava ouvi-los para atacar os raros passantes daquela hora. Naquele dia, nem ela sabia como, foi localizado o andar e o rapaz encharcado subiu no escuro todos os lances da escada. Em desespero e para evitar um tremendo escândalo no prédio apressou-se a abrir a porta que dava para a escada e acendeu a luz. Viu-o chegar extenuado da corrida, sem fôlego e sem saber se seria ela a culpada. Olharam-se muito perto um do outro e ninguém falou. Depois, sem que pudesse evitar ele puxou-a para si e beijou-a. Deu meia volta e desceu, cuidadoso, os degraus degradados até à rua. Lá de baixo chamou-lhe cabra!