Noite estranha noite

Miranda, cria do bardo e de Marco e Elisabela, tinha costumes e hábitos muito seus. Sentada ao sofá, os pés ajustados em meias sobre uma mesinha de vidro, assistia a'O Quinto Selo: filme húngaro da década de setenta; sobre as questões morais às quais não se pode alienar quando postas na mesa. Sobre um bloquinho, a uma mesinha ao lado, rabiscos ininteligíveis sobre Mulholland Drive que diziam assim, Dois terços do filme se passam na cabeça de Watts (nunca guardava o nome das personagens), uma personagem depressiva cujos sonhos de vingança, conscientes ou não, lúcidos ou não, misturam sentimentos de êxtase (a vida do diretor Adam Kesher (desse ela se lembra) a tornar-se insuportável) e repulsa (a cena em que o homem cospe café, repetidas vezes, homem que Watts vislumbrara no jantar, quando desgostosa e a beber um café).

Ela era dada a interpretações, mais do que a críticas e resenhas. Havia outras folhas rabiscadas pelo chão; algumas, legíveis aos olhos do narrador, eram sobre O Faról e assim diziam, A juventude e a velhice, a odiar-se enquanto encaram uma a outra: o rapaz novo olhando para o velho e dizendo, Não serei assim, o velho olhando de volta e dizendo, Teus mistérios não me enganam, odeio-te porque sei onde terminará. A sereia como corporificação do objeto de desejo. O faról... Uma representação cinzenta dos desejos não consumados, carnais e espirituais, e assim, etc.

O celular de Miranda emitia sequências irregulares de frequentes notificações. Ela as conferia com desinteressado interesse. Uma mensagem lhe dizia ''Um espectro ronda a Europa...'' Eu não estou na Europa, pensou. Outra lhe dizia ''Manda uma foto da pe...'' Ela foi ao google imagens, digitou dick pics, escolheu uma e a enviou. Outra ainda dizia-lhe assim ''Mana, 'tá todo mundo falando do Q...'' Outras diziam menos, com mais palavras ''Miranda, tem uma lasanha no congelador, não se esqueça de regar a Tinoca e dar um leitinho para a Margarida.''

Na sua playlist, músicos jovens, overdoses e suicidas. Mas ela não era dada a entorpecentes e depressões. O que ela fazia era reconfigurar sua playlist a todo o momento, pois para ela cada nova música inserida perturbava-lhe o meio musical. A última atualização - um recomeço - contava com seis canções apenas: The Crystal Ship, The Doors; Lover Come Back to Me, Billie Holiday; Dark Star, Grateful Dead; The Lady in the Moon, Gabor Szabo; Morning Dew, Jeff Beck; e Villains of Circumstance, Queens of the Stone Age.

Assomada a fome, Miranda lembrou-se de que nada havia na geladeira para lhe lubrificar a garganta e por mais que apetitosa fosse a lasanha, necessitava de um refri, a estas horas ainda disponível nalguma geladeira por aí rua afora. Pausou O Quinto Selo quando os personagens, de caras assustadas, silenciosos, as cabeças por cima dos ombros, escutavam atentos os passos de algum qualquer que caminhava pelas ruas, escutavam também atentos aos arranhões em sua porta, os latidos esganiçados sobre eles, que a fizeram, de meias e pijamas, abrir a porta e ver toda a pequenez raivosa do Yorkie de sua vizinha transformar-se em pernas e voltar correndo para sua dona de penhoar e cabelos molhados com meio corpo para dentro do corredor.

Miranda, calçada e de casaco, de calças de pijama, foi a uma loja de conveniência do posto da esquina - porque as adorava, as lojas de conveniência, e porque esta lhe era próxima. Pegou de uma coca, imaginando a si mesma, ora dentro de um grande copo, ora pequeníssima dentro de um copo de tamanho natural com o borbulhante líquidro negro (vermelho?), desaparecendo aos poucos, desintegrando-se, os seus ossinhos saudáveis se esfarelendo como ração para peixes e, lembrando-se de um verso seu favorito, Find what you love and let it kill you*, e sentindo com isto um suave impulso suicida, pediu um maço de Dunhill e saiu do posto.

Do lado de fora, os cabelos no rosto, a sacola com a coca pendendo do braço, Miranda, enquanto punha o maço no bolso, espirrou, e o seu espirro foi como qualquer outro de qualquer pessoa, foi uma coincidência que, logo após isto, alguns segundos depois, uma caminhonete, cujo tanque vazava gasolina, um vazamento cujo rastro longo e brilhante se aproximava dela, fosse consumida por chamas violentas e inesperadas. Um grupo de jovens do outro lado da rua, a maioria com um grande Q cinza estampado em camisetas negras, observava extasiado as chamas: um deles, um menininho, fazia repetidamente com a mão o gesto de um revólver, apontando para a caminhonete, como se fosse ele o mentor do fenômeno químico.

De volta ao apartamento, Miranda, os olhos vivos da chama, os ouvidos tomados de burburinhos, esperava à janela, enquanto observava os bombeiros a apagar o fogo, as pessoas em torno, acumulando-se, pelo ponto da lasanha no forno. De cigarro à boca, procurava pelo isqueiro. Novas notificações: ignorou-as; primeiro os afagos do tabaco, pensou. Achado o dispositivo, a chama já acesa, prestes a acendê-lo, interrompeu-a a campainha. Companhia inesperada, e com quem por certo dividiria a sua massa apetitosa, pensava animada.

Um corpo compacto de vizinhos, para seu desgosto e espanto, a mirava, as cabeças umas sobre os ombros das outras a espreitar para dentro. Reclamavam de um mau cheiro de gás que, segundo afirmavam, vinha de seu apartamento. Não sinto cheiro algum, disse uma intrigada Miranda para todos aqueles narizes torcidos. Viram a Margarida, minha gatinha, perguntou ela, que não obteve resposta, e com isto, sem o querer, fazendo com que fossem todos embora para suas casas. Lembrando-se de Tinoca, regou-a. De volta a janela, o prato em mãos, a lasanha lhe sendo vaporenta, viu sua Margarida do outro lado da rua: sentada rídiga sobre uma mureta, lá embaixo, a lhe encarar.

Margarida, chamou. Nada. Margarida, Margarida. Psiussiussiu. Nada.

Encarava-lhe apenas. Noite estranha, pensou.

Findo o segundo pedaço de lasanha, procurou pelo seu cigarro deixado sobre o encosto do sofá. O cilindro ansioso na boca, a chama acesa a lhe chamar, e mais uma vez a campainha e nada da combustão. A companhia nem tão inesperada lhe cruzava a porta. Pensa o narrador que o que disseram um ao outro não importa ao leitor, não importa nem a ele, que os observou agarrarem-se um ao outro no sofá, Miranda sobre seu colo, os braços enlaçados em seu pesçoco, as mãos a buscar o cigarro e o isqueiro, a fricção dos corpos a esquentá-los. Seu nome não importa, chamemo-lo apenas de companhia. Importa-nos o acender da chama, do acender do isqueiro às lambidas quentes na boca do cigarro. O dar-se da combustão e ambos os dois sendo consumidos por uma labareda faminta. À TV, os homens pareciam contemplá-los, ali, a queimarem-se em silêncio. Miranda observava as próprias mãos, aflamadas. No quase desenhar-se de um grito, que era de desespero, não de dor, seu corpo, assim como o do rapaz embaixo dela, tornou-se uma mera mancha negra no sofá. Ali dentro, o que restava de vida vinha das incessantes notificações no celular, e de Tinoca também, não esqueçamos dela.

Do lado fora, no corredor, os vizinhos batiam à porta.

* Encontre aquilo que tu ama, e deixa que te mate (tradução livre).