Rua tal, número tal
Entre amigos, eu estava lá. O médico, amigo nosso, voltara. Disse-nos ele assim:
- Perdi o ônibus. Era o último. Posso ficar? Há lugar?
Olhei para nosso amigo em comum, nosso anfitrião, o comerciante. Este nos sorriu a ambos. A oportunidade se fez e se alongou: o encontro que há muito não se dava. O dono da casa levantou-se enquanto o médico se sentava e foi preparar outro café.
De nosso pequeno círculo, o médico era o mais desconfortável. Tanto aqui, agora, quanto em algures e nenhures, momentos passados e lembranças, festas e agravos. Agora, desconfortável, porque perdera o ônibus, porque vivia o não planejado, porque era mais um numa casa pequena. Como não falava, como não falávamos - o comerciante falava à filha - pus sobre a mesa meu celular e acionei o rádio.
Falava-se do tempo. Tema sempre ameno, mesmo quando sobre tempestades: o que não era o caso. Depois vieram os crimes. Olhei para o médico, medindo seu constante desconforto. As notícias ruins me punham calmo. Não era comigo, não eram sobre mim. Ao que parece, o mesmo se dava com nosso amigo doutor. A voz do radialista, o cheiro do café, o ambiente fechado que nos guardava do frio, modulavam-se e misturavam-se num quê sem conteúdo.
Perdidos no conforto, despertamos com o silêncio abrupto. A menina me observava, de pé, do outro lado da mesa; seu pai, também de pé, me olhava com cara feia, entregando-me o celular, a rádio desligada, dizendo:
- Ainda que o horário seja próprio, a companhia é imprópria. Dizendo isto, guiou a filha até o quarto. Quando retornou, trouxe-nos o café à garrafa térmica. Sentou-se e disse:
- A..., onde pousará?
Antes que o médico, supreso, lhe respondesse, ele continuou:
- Não se preocupe, há colchões para todos. E há a poltrona reclinável.
- Posso ficar na poltrona - disse o doutor.
- A poltrona já é minha - disse eu, brincando, piscando para o anfitrião, que nos servia o café e nos alcançava os frios e os pães.
Comíamos e bebíamos em silêncio. Olhando por cima do meu ombro, verificando a porta fechada do quarto da menina e mostrando meu celular ao comerciante, num gesto claro, e com isto recebendo sua aprovação, voltei a acionar a rádio.
Os crimes, os ouvíamos em silêncio. O comerciente mastigava forte e movia-se com os braços por sobre a mesa, as mãos tocavam em tudo, mudavam o lugar de tudo, comiam a tudo. Eu lhe contava histórias, por sobre as vozes da rádio, resmungos me vinham como afirmações e incentivos para que eu continuasse. O médico se mantinha em silêncio, os olhos grandes à vista sobre o pires raso, a xícara ao lado, deslocada.
- Hoje recebi um bilhete na rua, de uma criança. Disse-nos de repente o médico.
- O que tem isto - perguntei.
- Convite para uma missa.
- E o senhor pretende comparecer - perguntou o comerciante risonho, que apesar das bondades não era homem religioso.
- Distraído, percebi o que talvez uma atenção mais apurada não fosse capaz - prosseguiu o médido, misterioso.
- O que - perguntou o comerciante, atento, sem risos, partindo o terceiro pão com as mãos.
- O convite estava apegado a outra coisa. Um bilhete escrito à mão. Um endereço completo e...
- O que, homem - perguntou com impaciência o comerciante, largando os pedaços sobre o prato cheio de farelos e restos.
O médico simplesmente tirou algo do bolso e lançou sobre a mesa. Uma fotografia, ao que parecia. Virada para baixo. O comerciente, curioso, tomou-a nas mãos e tão logo o fez, lançou-a de volta sobre a mesa com um berro, no mesmo instante em que se levantava, empurrando a cadeira para trás e a mesa para frente. A menina, que acordara, chamava pelo pai, pai este que, antes de nos deixar novamente a sós, olhou para o médico, visivelmente transtornado, e perguntou aos sussurros:
- Que brincadeira é esta, e apontou para a fotografia sobre a mesa, quando eu voltar quero ver isto destruído, entendeu?
Se eu vi a fotografia? Uma vez, trabalhando em um complexo industrial, à hora do jantar, turno da noite, um colega à minha frente mirava, os olhos fora das órbitas, expressão que naquele momento me fora apresentada, um vídeo que recebera no celular sobre homens de um carro forte feridos por uma bomba caseira que lhes fora lançada. Eu podia lhes ouvir os gritos. Zeloso de minha sensibilidade, não assisti àquele documento de brutalidade.
Tomei da fotografia, fui à pía, abri de uma gaveta, e de lá tirei um isqueiro com o qual a queimei.
Mais tarde, mais calmos, à mesa, decidimos os três visitar o endereço. E a polícia, perguntou o médico. E se, comecei eu. E se por um acaso, continuou o anfitrião. Está certo, está certo, disse o médico, tomando do bilhete amassado do bolso e relendo pela enésima vez o endereço escrito à lápis. A noite se punha mais silenciosa e fria e a menina novamente chamava pelo pai.