Os deuses de outrora
Estávamos na era das sombras, onde deuses e monstros ainda andavam sobre a terra, pisando sobre nossas cabeças enquanto dormíamos.
Andávamos em reino de guerra e morte, onde todo beco era lar; toda caixa era cama e todo homem era mau. Havia pouco a se fazer, pouco a pensar, o medo supria tudo; reduzia o ser a nada além de tremores, sofrimento. E esses éramos nós, em nosso cerne.
Mas houve alguém que levantou, alguém cujo medo foi sobrepujado, cuja dor já não importunava a pele marcada, cuja força era superior à dos deuses que os torturavam. Esse alguém foi sui generis, foi um; e isso bastou.
Em seu nascimento houvera luz e, em sua morte, ainda mais. Ergueu-se por sobre as armas, se elevou por sobre chamas e clamou pelo fim de tudo, era belo o seu pensar, era puro e apenas dele.
Não houvera resposta, no entanto; as armas ainda disparavam, o fogo ainda queimava, sua pele se rasgou e sua matéria e sangue pintaram o céu de vermelho. O mártir nasceu em dor e partiu nela, unido à mácula e ao sofrimento que impregnou o mundo.
Com o tempo, sua voz foi ouvida, a guerra cessou, as armas calaram o rompante de fúria e seu sangue correu pelo mundo. Os deuses dormiram e as sombras se afastaram; os homens saíram de seus becos; abandonaram suas caixas, despertos, longe da violência e da dor.
A mundo compreendeu, os homens abandonaram o lumaréu da guerra, e o dia amanheceu em paz, pela primeira vez.