Nossa cenoura!

Dona Estefânia, fervorosa devota de Nossa Senhora, andava pouco satisfeita com o trabalho de Dona Sebastiana, caseira, residente, com o marido Estáquio, em seu sítio, em Chapéu de Couro, a pouco menos de hora e meia de Belo Horizonte.

A cada ida quinzenal que fazia à propriedade, Dona Estefânia contabilizava mais uma deficiência, ou duas, no serviço da empregada. Era patroa exigente sim, mas nada de demandas extraordinárias. Uma observação sua sobre o aparente descaso com o matagal, antes um belo jardim, que circundava a gruta de cristais da Senhora Desatadora de Nós, encontrou um resmungo que ainda mais agravou o seu descontamento...Mas deixou passar, aliás ia deixando, somente e silente, anotando o rol das faltas de Sebastiana.

E se cogitou demiti-la, foi refreada, tanto pelo espírito cristão, quanto pelo custo estimado de uma indenização, praticamente empatados.

Numa bela manhã de sábado, enquanto Sebastiana cuidava do almoço,

em raro momento de entretenimento, dona Estefânia, fazendo companhia ao genro Leandro que tomava sua cervejinha, encetou um bate-papo brincalhão, referente aos tira-gostos vegetais que estavam ali servidos...

Leandro e Estefânia - que não tomava uma única gota de bebida alcoólica - detiveram-se, subitamente no capítulo das cenouras...com observações comparativas aos calibres do tubérculo cru, que gostosamente mastigavam, sem que ao menos supositoriamente pudessem imaginar, caídos nos evangelicais ouvidos de Dona Sebastiana.

E eis que, de repente, Dona Estefânia e Leandro, não mais ouvindo a lenha crepitar sob as panelas, dão-se conta que a cozinha fora abandonada...

Uma ida até a casa do caseiro, que aliás era bem confortável e arranjadinha, confirma-lhes o entendimento de que Dona Sebastiana estava bem...ajeitando suas trouxas para partir imediatamente com o marido.

Indagada sobre o seu repentino e peremptório gesto, dona Sebastiana, evangélica de raiz, deixou claro seu descontamento com o papo cenourial, a seu entender, eivado de conotações malévolas que o Senhor, definitivamente, reprovava.

E o acerto ali se fez. Jesus e Nossa Senhora Desatadora de Nós, para o bem das quatro partes, desfaziam sua união.

Paulo Miranda
Enviado por Paulo Miranda em 02/08/2020
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