SANTO REMÉDIO

SANTO REMÉDIO

"Zé Trambique" descendia de uma família inteira de espertalhões baratos, malandros, escroques, patifes "da melhor qualidade" -- como dizia o vulgo -- e nem o vira-lata escapava da definição. Se houvesse oportunidade roubava qualquer coisa "dando sopa" na cozinha, constrangedora de tão modesta. "Zé" outrora se dedicara a crimes "mais pesados", porém a má sorte durante uma "saidinha bancária" o levara "para atrás das grades" por ano e meio, Para aquele "inferno" êle não voltaria jamais !

Resolveu dedicar-se ao "ramo dos remédios caseiros", de venda fácil e lucro certo, porque o populacho não tem dinheiro para os remédios de marca, de fábrica. A "epidemia do Corona" lhe abriu novas portas, misturou um bocado de ervas medicinais a um bocado de cachaça ordinária, alho ralado, canela em pau e outro bocado bem generoso de mel silvestre -- existe o industrial, leitor palhaço !-- e gotas de mercúrio-cromo, "para dar cor" !

Estava pronto o "CURA TUDO 171", especial para enfrentar com sucesso até o "COVID-38", a próxima "safra" da doença mortal... "receita criada pela bisavó afro-índia, conhecedora de matos & ervas". "Zé Trambique" já "matara" e "ressuscitara" avós e bisavós inúmeras vezes, conforme a ocasião pedia uma ou outra coisa. O comércio ía "de vento em popa" até aquela manhã, quando surgiu na feira uma figura magra e alta, acompanhada de um "yankee", para "pôr sua canoa à pique" !

Americano se conhece de longe: alto, grandalhão, cabelos de fogo e ar de nojo de quem está pisando em baratas, "cucarachas", como dizem lá. Já a secretária do Secretário de Comércio Exterior, com o mesmo ar emproado de quem "tem o rei na barriga", vinha mostrar ao estrangeiro como o povo fazia a moeda circular no país, em vendas as mais diversas. "Zé Trambique" anunciava aos berros seu produto quando a brasileira ouviu aquela "barbaridade" e dirigiu-se a êle, revoltada. O ministro americano a acompanhou, interessado no desenrolar da conversa, êle que vivera por uns tempos no Canadá e "aprendera" Português.

-- "Amigo, você não pode vender remédio pra curar COVID... isso é uma fraude" !

-- "Um minuto, madame... o que cura É A FÉ, meu remédio "dá um empurrão" para as defesas internas produzirem os anticorpos para qualquer doença" !

-- "Mas isso é um absurdo, o senhor não tem comprovação alguma do que afirma" !

-- "Por acaso há remédio nas aldeias indígenas, nos Quilombos ?! O que cura lá são as orações do pajé, do pai-de-santo, as defumações e mezinhas, remédios caseiros, chás, etc. É somente a Mente que, frequentemente, de forma potente faz reagir maravilhosamente as forças internas da gente" !

-- "Pois, então, me mostre 1 pessoa curada de Corona e eu compro essa porcaria" !

"Zé Trambique" estava pronto para os incrédulos, os "São Tomé" da vida, mas tentou argumentar:

-- "Não me vejo obrigado a nada, já que a senhora NÃO ACREDITA... isso é só para quem TEM FÉ ! Olhe aí o americano... lá nos "Stêites" fazem testes de cura com dois grupos e, no que não toma o remédio real, tem gente que SAI CURADA. A força DA FÉ no "remédio falso" desperta as defesas do organismo. Não é assim, "gringo" ?!

-- "SHUT UP, MAN"!, (*1) retruca o americano, irritado.

-- "XAROPE, pomada, óleo medicinal, comprimido... qualquer coisa pode curar desde que se tenha fé. Ah, ali está uma jovem que tomou e se curou. Senhorita, por favor... senhorita, venha cá um instante" !

A jovem, que circulava meio distraída a uns 2 metros da "banquinha de caixote" do pilantra, se aproximou.

-- "Conte aí pra distinta o efeito do meu "CURA TUDO 171" !

-- "Ah, "baroa", (*2) é um santo remédio... eu acordei cega e surda, uma dor de cabeça terrível, sem paladar nem pra pimenta e a 'vó dele me trouxe um vidrinho. Só tomei 3 doses e em dois dias estava curada. Os sintomas do COVID-19 (ela os lera em depoimento de atriz, num jornal) sumiram todos, um verdadeiro milagre" !

-- "'Taí, madame, a testemunha ocular da História" !

-- "Hhuumm, vocês são bem parecidos, não é" ?!, questiona a secretária, meio desconfiada, mirando ambos com cuidado.

-- "Coisas do Destino, senhora, a raça é uma só, meio negra, meio índia... 'taí o frasco, 8 reais, leva 3 por 20 "paus" !

-- "É, êle é meu tio, "nóis mora" perto um do outro... mas êle batalha, "não joga a toalha", tem gente que "malha" mas o remédio não falha ou não me chamo mais "Analha" !

-- "Hhuumm... falar rimando é "mal de família", é ?! NÃO COMPRO coisa nenhuma, não estou aqui para ser feita de besta" !!!

-- "Ora, ora... seu dinheiro pode até ter valor, mas sua palavra NÃO VALE NADA" !, ironiza "Zé".

-- "Muito bem, eu pago o vidro... mas não levo essa porcaria" !

Tempos depois, já em abril deste fatídico 2020, soube-se pelos jornais que a secretária fôra internada com COVID e "Zé Trambique" foi visitá-la, dizendo-se motorista da família e com recado importante para a senhora.

-- "Você, por aqui ? Trouxe o remédio ? Agora, eu tomo" !

-- "Demorô", querida... acabou o estoque, agora eu 'tou vendendo a "Medalha Milagrosa de Santo Antônio", traz um pedacinho dos ossos do Santo, essa cura tudo, tudo mesmo" !

-- "'Pera lá, seu pilantra... ninguém chega perto do Santo, está num mausoléu bem protegido. Como tens os ossos dele" ?!

-- "Lá vem a senhora de novo... Santo Antônio DO CANINDÉ, santo milagreiro das caatingas, protetor do Agreste, não é o de lá de Assis, não" !

-- "Deixa eu ver se entendi... fizeram "picadinho" do padre e você tem um bocado de "pedacinhos" dele" !

-- "Nada disso... um monge veio de lá do Ceará e me deu algumas medalhas, para "distribuir" entre os necessitados. A amiga vai me dar a contribuição que puder" !

("Zé Trambique" só não explicou que disputara com meia dúzia de urubus os "ossinhos" de um vira-lata morto. As medalhas de Santo Antão foi fácil de conseguir, depois foi só colar os ossinhos caninos em cada uma, com Superbond.)

A secretária colocou comovida a medalha no pescoço, singelas lágrimas a escorrer discretas nos cantos dos olhos. "Zé Trambique", com a carteira forrada de notas graúdas, partiu ciente de ter cumprido um momento de caridade cristã, A velhota findou no cemitério dias depois, ainda com a medalha no peito. O "Zé" pegou COVID-76 devido à visita... ficou cego, surdo, mudo e paralítico por uma semana, contudo recusou tomar seu próprio remédio. "Êle não era doido !", comentaria já restabelecido.

"NATO" AZEVEDO (em 26/julho 2020, 7hs)

OBS: (*1) SHUT UP, MAN ! - (lê-se "XÂRAP MEN"), significa... CALE-SE, HOMEM !

(*2) "BAROA" - na voz do povo corruptela de BARONESA, "mulher de "BARÃO", qualquer pessoa endinheirada. com a carteira "recheada".