CAMINHOS CRUZADOS

“Tudo que existe é diferente de mim. E, por isso tudo existe”. (Fernando Pessoa)

O mundo estava assolado por uma pandemia virótica, a Covid- 19. Tinha de ficar em isolamento social por imposição do Ministério da Saúde e da OMS. No esquema de trabalho a domicilio, tinha tempo ocioso e aproveitou a ocasião para reler seus livros esotéricos selecionando temas como a reencarnação, a física quântica e o inconsciente coletivo. Esperava decifrar os enigmas do ocultismo.

Suas saídas esporádicas eram sempre tensas, pelo medo de pegar a virose e a vista da miséria espalhada pelas ruas que só pioravam a sua angústia existencial. Melhor mesmo era ficar em casa lendo sobre os casos de reencarnações projetados para o passado ou para o futuro. Quantos renascimentos e o que poderia lhe acontecer depois de sua morte nesta etapa de vida? Utilizava-se de alternativas para se envolver relaxando com exercícios corporais. Seria útil a meditação e o desdobramento astral ligado aos “mistérios energéticos da estrutura dos sete corpos sutis”. Por mais que tentasse não atingia os exercícios em profundidade, porém não ia desistir.

Depois de algumas semanas acordou e viu que sua parede estava cheia de manchas provocadas por infiltração de água. Pronto, agora acabou a minha paz, pois vou ter de me mobilizar junto ao síndico e aos vizinhos para checar de onde vinha o problema. E, logo numa pandemia!

Num desses dias cinzentos foi espairecer pela cidade, mesmo que suas ruas estivessem esvaziadas e quase sem o movimento cotidiano de pessoas. Quando deu os primeiros passos pela calçada se surpreendeu: o dia estava ensolarado e havia muita gente andando com máscaras, mas alegres e excitadas. Falavam o idioma espanhol. Estava numa área vasta e diante de uma bela construção onde havia um grupo de pessoas que se voltavam admirados para a Catedral de Sevilha, a maior catedral gótica do mundo. O guia turístico informava que, neste local, existia uma Mesquita da época do domínio mouro sobre o sul da Península ibérica, mas que foi demolida para marcar a expulsão dos árabes e a reconquista territorial pelos cristãos. O poder muçulmano na Espanha foi longo percorrendo o século VIII (ano 711) até o ano de 732. Estes vinte e um anos foram de poder exclusivo, mas só foram vencidos em 1492 (séc. XV). A invasão árabe durou quase oito séculos na Europa.

Sabia sobre a língua, o país e a cidade, mas não conseguia atinar porque foi parar ali. Nisso escuta o som de um megafone anunciando o desfecho da Gripe Espanhola em toda a Europa. O movimento que já era grande aumentou, as pessoas surgiam de todos os lugares, jogando as máscaras ao léu e se abraçando de satisfação. Ah! Parte de sua agonia em não saber as razões de estar naquele país foi resolvida, chegou com o fim da doença que surgiu em 1918 e se expandiu em pandemia, por conta da Primeira Guerra Mundial. Seu ciclo foi de março de 1918 a janeiro de 1920. Estima-se que o numero de mortos chegou a cem milhões da população do globo.

Mais tranquila se afastou da multidão e foi conjecturar sobre o seu caso. Lógico que havia entrado sem perceber no quarto corpo na projeção astral, e presenciava a experiência da simultaneidade de tempo e de espaço. Nada era sonho, tudo era real. Havia recuado cem anos para reviver a Gripe Espanhola. Entretanto, notava intrigantes detalhes: ninguém estranhava a sua presença, seu espanhol era cristalino, vestia-se na moda das mulheres da década de 1920, a era do Jazz, do Cinematógrafo e de Hollywood. Logo, a sua energia vital estava conectada, poderia se locomover para onde quisesse ir, e se materializava como se fosse pessoa nativa.

Quando começou a querer ir para outro canto da cidade, viu-se imediatamente andando em becos tortuosos, com casas brancas e fachadas com balcões e pátios floridos, uma mistura de herança romana e oriental nas terras andaluzas. Mais adiante, se viu frente à uma praça em que edifícios de três a quatro andares anunciavam a arquitetura moderna vigente àquela época. Uma sensação de déjà vu como se conhecesse o lugar. Muita gente passeando com seus filhos, já que podiam circular livremente após a pandemia. E, à sua direita observou um restaurante que ocupava todo o segundo andar do pequeno prédio. Tinha uma passagem independente que permitia chegar para as refeições. Apesar do frio o sol coloria o ambiente e a animação dos sevilhanos.

Sem que pudesse entender o seu impulso, viu-se andando em direção ao prédio contíguo. Foi reconhecida na portaria e subiu três andares. Chegou ao apartamento e notou que a porta estava entreaberta. Entrou, viu que o espaço estava vazio e ia se retirando quando notou um homem olhando pela janela a praça cheia de gente. Não teve jeito senão cumprimentá-lo. Era um rapaz de boa aparência e com uma tez azeitonada bem ao estilo mouro.

-- Você demorou a chegar, quase desisto de esperá-la. Veja que belo imóvel e tem até mesmo uma varanda onde podemos colocar plantas.

Ela não sabia de nada, mas viu-se à vontade para responder: -- Pablo, o aluguel é alto. Poderemos ir para longe do centro. É bem mais em conta.

-- O porteiro informou que há um vazamento em um dos banheiros e que a proprietária promete um bom desconto se toparmos o conserto. Já temos o endereço dela. Vamos.

Saíram caminhando como dois bons amigos. Ela pedindo informações sobre o bairro, o restaurante e a praça do tamanho de um campo de futebol, arborizada e com canteiros de flores. Um espaço circular que parecia uma Mandala simbolizando os 99% da energia do mundo espiritual, pois vivemos rodeados de luz, mas só dominamos os 1% do mundo da matéria. Tinha lido num manual esotérico.

O rapaz apontou para o lado oposto e disse que a dona do imóvel estava saindo, que ele ia se apressar. Desceu a escada que ligava o entorno da praça situada no subsolo, como um anfiteatro. Ao longe, se via um bosque projetado como moldura ambiental, A moça demora olhando à sua volta. De repente, estava deslizando pelo chão num voo baixo. Uma sensação incrível voar como os pássaros! Só assim pôde alcançá-los.

Em novo cenário, após o acerto do contrato de aluguel, o casal caminha nas redondezas e travam outro diálogo: --Elisa repensa o nosso relacionamento, não adianta escapar, pois somos predestinados. Você é minha alma gêmea. Concordar em morar juntos é um sinal de que não vamos ficar só na amizade que tivemos até agora.

--Isto está parecendo um folhetim, não acredito em amor eterno e incondicional. Pensava que fosse avançado, que poderíamos manter nossa independência. Estar na mesma moradia não significa optar por relação amorosa, mas economizar nas despesas mensais. Foi assim que combinamos.

A mulher fica decepcionada e se afasta, como um passe de mágica, do homem disposto a seduzi-la. Era inútil apostar na sinceridade entre homem e mulher, pois os machos usavam as amizades femininas como fachada para esconder suas intenções. Lutar pela autonomia e igualdade de condições entre os sexos eram bandeiras, incluídas no espírito libertário da época, concretizadas pela Revolução Russa, e pelas revoltas sociais na Europa desde o século XVIII. Mas a utopia humana ainda precisava de um longo caminho histórico.

Ela se desvencilhou rápido daquela situação saindo do “Condomínio Circular”, e retornou para o espaço/tempo de onde desaparecera. Passados cem anos a humanidade não aprendeu com seus erros e acertos. Voltavam às epidemias e o mundo continuava sem se preparar para o enfrentamento das doenças. O avanço tecnológico não era utilizado para prevenir e melhorar a qualidade de vida no planeta.

Saramago em seu Ensaio sobre a Cegueira diz “somos cegos que veem e que desconhecem a sua cegueira”. O tempo – o que foi que é que será – é ilusório, e em sua vida passada percebeu que os acontecimentos são simultâneos. E, se o tempo não existe o que muda é a “percepção”. Se todos os humanos pudessem ter a experiência de estar em outras épocas, quem sabe teriam outra maneira de resolver questões essenciais? E se puxássemos a ponta do mistério dos fenômenos sutis, tirando o véu que nos impede de enxergar que” não vivíamos por acaso, sem lógica nenhuma, num vale de bobagens”? Dizia Guimarães Rosa em um de seus contos. Em outro, a Terceira Margem do Rio o abandono do homem em sua canoa, no meio a meio, no ir e vir foi a forma encontrada de seguir a energia fluente do rio, se desapegando “sem fazer conta do se-ir, do viver”.

Que sentido teria a vida e tornar a viver- com as reencarnações- se não aprendíamos com as vidas acumuladas? Fazia conclusões superficiais. Teria de buscar uma compreensão sensorial ampla e profunda das coisas. Impossível explorar todos os mistérios metafísicos, por isso optou por expandir a projeção astral com os contatos multidimensionais e atemporais.

Em busca de seu eu profundo (a alma ou o inconsciente) direcionava para a expansão da energia com os mistérios dos sete corpos sutis e dos sete chacras. Buscou a numerologia atrás dos simbolismos do “número sete” e descobriu que era como um “portal” indicando o processo de passagem do conhecido para o desconhecido. Este saber vinha registrado em seitas e religiões dos povos antigos como os sumérios. Até hoje os adeptos da numerologia acreditam que o número sete é um número místico, um número de sorte.

Além de marcar o elo vital energético o número sete representava a totalidade do universo em movimento e era regulador das vibrações: o arco-íris tem sete cores, são sete as notas musicais, são sete os dias de semana, as fases da lua tem um ciclo de sete dias, são sete corpos sutis e sete chacras ou centros de energia do corpo. Os ciclos de vida se alteram a cada sete anos (setênio) base da orientação psicoeducacional.

Seu desejo de aventurar-se pelo mundo em busca do inesperado levava ao domínio da técnica de projeção dos corpos sutis. Com sua imaginação ampliada e treinamento queria atingir o sétimo corpo e chegar ao Nirvana. E, quem sabe poderia gritar para todos que quisessem ouvir:” Estou no Sétimo Céu”.

Este é apenas um conto e qualquer comparação com a realidade provará que a ficção é menos misteriosa que os mistérios que rondam a humanidade, como as crenças dos religiosos e das seitas sobre a origem do mundo e dos humanos.

ISABELA BANDERAS
Enviado por ISABELA BANDERAS em 27/07/2020
Código do texto: T7018322
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