233 O Marçano
Instado para que contasse, ele disse que conheceu bem e foi até amigo de um homem ainda novo que teve como marçano na sua loja. Era um rapaz simpático, entroncado, trabalhador. Por aí não lhe faria reparo porque nunca recusou deitar mão ao que fosse preciso sem que lhe fosse pedido. Era daquelas pessoas que, ao fim de meia dúzia de dias, se tornam indispensáveis tão diligentes e atentos estão, tão activos, organizados e sérios parecem. Muitas vezes, com admiração, o olhava. Gostaria de ter tido um filho assim, pensava. Aumentou-lhe o salário para o compensar e Gustavo passou a ser quase íntimo do patrão. Uma vez pediu-lhe que ficasse para arrumar e por preço na nova mercadoria. Era Janeiro, fazia muito frio e o tempo estava sem uma nuvem. Brilhava uma lua cheia como raras vezes vira. Naquele dia, no entanto, sentiu que o empregado estava tenso e inquieto. Quebrara uma caneca de louça, coisa de somenos importância e, a partir daí, viu-o ávido de ar abrir com alguma força a roupa e dois botões da camisa serem arrancados pelo gesto. Quando lhe perguntou se estava bem ele sorriu mas o olhar não era o mesmo. Havia reflexos fortes que rodeavam as pupilas e tinha agora o rosto cheio de pelos. E, continuou a narrativa, aludindo ao luar, ao modo como Gustavo fugia de o ver, ao movimento preso dos braços, às cerdas escuras que já medravam entre os dedos grossos. Depois, com um ar de fera, rilhando os dentes, abriu a janela e fugiu por ela. O ar gelado entrou na loja e ele, que nunca acreditara em lobisomens, fora amigo de um.