Ana e os Outros
Ana nasceu numa família de classe média, teve a educação padrão de classe média, mas uma ambição um pouco acima da média. Considerando a ascensão social propagada das classes mais baixas do Brasil, pode-se dizer que sua família era de classe média alta. Nada disso, no entanto, importa para essa história de Ana.
A profissão que ela queria ter, nem mesmo ela saberia dizer. Era boa aluna em tudo e poderia ter escolhido qualquer curso superior para cursar. Mas um relacionamento longo e difícil acabou por encaminhá-la para a faculdade mais próxima de sua casa, e para um curso que não implicaria compromisso muito grande para uma mulher casada. Cursou Administração de Empresas, sabendo que, no máximo, seria uma secretária executiva, já que de empresa não conhecia nada – nenhum empresário na família próxima ou distante; os familiares eram funcionários públicos, comerciantes ou profissionais liberais. Tinha aquela ideia de que só administra quem é dono ou descendente ou agregado. Seu namorado tinha um pequeno comércio, e nenhum dos dois imaginava que se tratava também de uma empresa onde os conhecimentos de Ana poderiam ser de valia. Mas isso não fez diferença, já que o relacionamento terminou várias vezes, e definitivamente, antes de ela completar seu curso.
Sem novo namorado (nem queria!), sem grandes perspectivas, sem grande formação ou interesse, Ana procurou qualquer emprego minimamente razoável, que lhe desse recursos para não depender dos pais, embora não tivesse qualquer intenção de deixar a casa deles.
Foi então que Ana conseguiu um cargo de vendedora – e logo, gerente – numa livraria do shopping próximo de sua casa. Não se empolgou demais, o salário era baixo, mas adquiriu o hábito da leitura. Lia todo tipo de publicação durante todo tempo que tinha disponível, que era grande, já que o movimento da livraria era pequeno e sua vida social, nula.
Sua rotina proporcionava contatos com os representantes de grandes editoras, e logo surgiu uma chance de trabalhar numa delas, em outra cidade. Mudou-se e começou como assistente da assistente do editor-chefe. Fazia apenas trabalhos burocráticos, tinha acesso livre a todas as publicações da editora e tempo de sobra para devorá-las, nas su noites e fins de semana solitários. De tanto ler de tudo e qualquer coisa, tornou-se uma leitora exigente e crítica. Após dois anos, ascendeu ao cargo de revisora. Como tal, lia manuscritos enviados por desconhecidos, conhecidos e protegidos da editora. Julgava-os, corrigia-os e discutia sobre os mesmos com sua equipe.
Até aí, tudo bem, Ana gostava do que fazia. Além desse trabalho, no entanto, Ana cuidava de alguns dos escritores do quadro da editora. Por cuidar quero dizer pajear. Essa era, de longe, sua pior tarefa. Todos eles, sem exceção, eram considerados estrelas do mundo literário. Mais por eles mesmos do que pela crítica, é verdade, mas isso não alterava nada: eram vaidosos, manhosos, teimosos, exigentes, imaturos e rebeldes, ou seja, insuportáveis! Mas a editora dependia deles, e eles, da editora, embora parecessem não saber disso. Ana tratava-os como as babás tratam as crianças: tentava disciplinar e acarinhar alternadamente, mas só o segundo surtia efeito.
A vida de Ana pode parecer sem-graça ao leitor, mas há algo que gostaria de acrescentar que talvez faça desta uma história peculiar. Ana vivia, além de sua própria, a vida dos personagens que conhecia. Naturalmente, ao ler tantos livros – na maioria ,romances – Ana tinha contato com muitos deles. Nem todos a cativavam, mas aqueles que sim alteraram sua vida de forma indelével.
Assim, durante um mesmo dia, Ana podia ser ela mesma ou podia ser um mordomo de um chateau francês do século 14, uma adolescente viciada em sexo, um garoto de orfanato, uma moradora de rua idosa, ou qualquer outro personagem que tenha lhe impressionado. Ela podia assumir as características do personagem por um dia todo ou alternando-os, conforme as situações se apresentavam. Se alguém de sua convivência percebia ou não, não se sabe, mas o fato é que ninguém a conhecia intimamente mesmo, então o julgamento que faziam de sua personalidade poderia simplesmente assimilar todas suas atitudes – coerentes ou não.
O efeito prático é que Ana conseguia selecionar com naturalidade a atitude mais adequada (de algum personagem) para uma dada situação. Procurava usar a sabedoria, o sarcasmo, a polidez, o charme, o romantismo, a timidez, enfim, qualquer traço que não fosse genuinamente seu, para se sair bem em qualquer situação diária, especialmente no convívio com os escritores problemáticos. As vezes encarnava até um dos personagens do próprio escritor, e este não percebia. Mais tarde, lembrando da cena, ela ria de forma vingativa.
Era capaz de agir como pessoas totalmente antagônicas dependendo de cada caso. Ora, muita gente faz isso também, mas Ana representava de forma coerente segundo o personagem adotado. Sua coleção era imensa e ela jamais esquecia qualquer pormenor da personalidade e cada um. A qualquer um poderia parecer caricato, claro, mas não aos escritores, acostumados que eram às vidas artificiais de suas criações. Talvez por isso eram cada vez mais dependentes de Ana, e isso a ajudou a manter seu posto, apesar de toda a estranheza que pudesse causar aos colegas da editora.
Ana tinha consciência desse seu comportamento, e tomava cuidado para não deixá-lo se manifestar quando estivesse exercendo suas tarefas de revisora. Certamente seu julgamento não seria confiável ou coerente. O mais interessante é que Ana se sentia bem assim e achava que essa capacidade a fazia diferente e especial: era capaz de transferir, dos personagens para si, todo tipo de sentimento que sua vida sem-graça não era capaz de lhe proporcionar.
Mesmo depois de parar de trabalhar, já idosa e ainda rodeada de personagens, Ana continuou a ler muito e nunca deixou o hábito de assumir outras personalidades. Para sua sorte, morreu antes de perder suas memórias, e deixou esse mundo digna e prematuramente como uma rainha envenenada pelo príncipe herdeiro.