A COISA

Sentado no chão e sem camisa, o menino compunha-se apenas de um calção feito de saco de farinha, tingido de um azul desbotado. Tinha no rosto sardas amorenadas d’áfricas, que se espalhavam junto à pele branca, essa de descendência espanhola, como que numa tentativa da natureza de fundir opostos em seu rosto. Seus olhos verdes – alimentados pelas cores das folhas de mangueiras centenárias que existiam na chácara situada defronte à sua pequena casa - olhavam incessantemente maravilhados para as mãos

Os dedos manipulavam um pouco da claríssima areia existente na rua, e que escorrera de alguma nascente há tempos, já que por ali não corria mais olho d’agua algum. Com isso, desviava os olhos do sol, comprazendo-se em vê-lo apenas refletido nos milhões de cristais das minúsculas areias que, àquela hora da manhã - naquele final do inverno de 1.968 - escaldavam em suas palmas.

Tinha 12 anos, quando muito. Era forte e experto, embora parecesse fraco e tolo. Estava naquela fase da vida em que o ser humano ainda é um inofensivo aprendiz dos ensinamentos do mundo. Não passava de uma alma casta que, como disse Joseph Jourbert, “respirava ar puro até nos lugares mais corrompidos”.

Uma pequena alminha, sedenta por conhecimento e aberta para ensinamentos. O mundo tinha tantos mistérios para apresentar a ele.... Não sabia nada além das coisas que aprendia na escola, que lia nos jornais velhos da banca de frutas da avó, ou que ouvia na rádio. O futuro morava longe e, em sua vida de urgentes aqui agora, era apenas um imberbe receptor dos odores, sons, e cores que o mundo proporciona. Vivia disso e assim. E foi então que o homem gritou:

- Veja!

Suas mãos rapidamente livraram-se da areia e ele levantou-se, dirigindo os olhos para o homem com óculos fundo de garrafa que o chamara. Era o seu vizinho professor, um tipo meio gorducho, destes que se aplicavam em leituras e talhados para o exercício da nobre função de educar. Não havia mais ninguém na rua, exceto os dois. E o menino viu que ele trazia o indicador em riste e apontava para o céu, tremendo em um tipo de êxtase. O menino então olhou para onde ele apontava e viu aquela coisa, que jamais - em tempo algum - escapou da caixa de sua memória.

Tratava-se de um objeto que ele supôs ser metálico, distante pouco mais de 30 metros e voando sem asas, uns dois metros acima da casa vizinha à sua, aproximadamente uns oito metros acima do chão. Possuía uns dois metros de comprimento por 80 centímetros de largura e cruzava o céu sobre a casa vagarosamente, desafiando totalmente a lei da gravidade, uma vez que não possuía hélices nem qualquer tipo ou barulho de motor. Era retangular, dividido em três compartimentos, sua cor era dourada e deu-lhe a impressão de que emitia um som mudo, tipo um zumbido do silêncio.

O menino também se extasiou com aquela visão. Do meio-fio onde estava, atravessou a calçada e deu uns 10 passos, correndo para o jardim de sua casa, que ficava um metro acima do leito da rua, local onde poderia observar mais claramente àquela visão. A coisa possuía em seu corpo duas aberturas arredondadas: uma embaixo e outra na frente. Por elas, o menino pode ver que o veículo emitia luzes tanto para a frente quanto para baixo. Elas eram multifacetadas e sem predominância de nenhuma cor em especial. A impressão que ele teve era de que aquele objeto concentrasse em seu bojo o condensado de uma via láctea inteira, em noite de céu límpido e estrelado.

A visão durou aproximadamente 20 segundos. Quando o objeto atravessou a rua e foi em direção às mangueiras centenárias, distantes uns 30 metros de onde estava, ele deu as costas ao objeto e correu rapidamente uns 20 passos para trás, indo para um local mais alto em sua casa, uma pequena elevação do terreno, de onde poderia ver que direção a coisa tomaria. Não conseguiu nada com este intento. Em cima do barranco onde estava, podia ver as casas de pelo menos três quarteirões à frente, onde se aglomerava a cidade. Mas o objeto não apareceu do outro lado das árvores. Foi como se a coisa tivesse sido absorvida pelas copas das mangueiras centenárias.

- Você viu? Você viu? – Gritou o professor tão logo a visão da coisa se esvaíra. Sim, ele vira. Pouco importa hoje se a cidade inteira tomou por alucinações aquela história do menino esquálido que trazia sempre o nariz vermelho e os lábios descascados pelo sol da cidade. Importa menos ainda se o professor - temendo a gozações inevitáveis dos seus conterrâneos - negasse depois a história veementemente. Tinha filhos para criar, uma prole imensa. Ainda mais naquela época, quando uma conterrânea sua enfrentava as maiores dificuldades por haver dito que dera água para uma extraterrestre na madrugada e que depois ela fora embora, numa nave em forma de sino. Sim, nada disso importa hoje. Porque uma coisa era certa: o menino vira aquela coisa no ar, piscando sóis e nebulosas e depois sumindo entre as copas das mangueiras centenárias...

O fato é que, depois disso, o menino pegou o estilingue e foi fazer o que todo menino fazia naquela rua que se dividia entre a cidade e a mata da fazenda Fortaleza: caçar passarinhos. Coisa, aliás, que ele não conseguira fazer até aquele exato momento, porque usava apenas cabeça de mamona verde para matá-los e sua mira não era lá grande coisa. Naquele dia tinha uma pedra.

Espreitou-se na saliência de um metro acima da rua e ficou de tocaia, no morro, onde habitava um pé de tangerina em flor. E o pobre do pássaro veio do céu onde há pouco a coisa passara, e pousou inocente, num ramo, para bicar a flor. O passarinho ficou meio escondido no verde das folhas, mas os braços do menino eram fortes e imprimiram tal força, que o bólido a tudo transpassou e finalmente ele conseguira.

Deu uns quatro passos e encontrou a caça, entre as folhas da grama. Entretanto, quando pegou o pássaro inerte e o colocou sem vida na palma da mão, um vazio veio de longe, como um nevoeiro negro e o foi preenchendo.... Ao sentir o pássaro sem vida na mão, brotou dentro dele uma dor tão infinita e duradoura, que tudo virou uma cascata e escorreu abissal, levando toda pureza que o habitava até então, para um canto escuro envolto em infinitas tristezas. Por um longo tempo, ondas e correntes de lágrimas escorreram inutilmente dos seus olhos inocentes, indo levar do morro onde estava, o sal que iria emoldurar a areia que escaldava febril à frente da casa...

FIM

Sérgio de Paula
Enviado por Sérgio de Paula em 20/07/2020
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