CORAÇÕES REVOLUCIONÁRIOS.
Início de noite. Enquanto aguardo Ivanna limpo meu rifle. Lá fora ao longe consigo ouvir os tambores e os cantos marciais. Pelotões do exército desfilam nas ruas carregando estandartes com a foto do “grande líder.” Penso que poderia estar entre eles caso a sequência de acontecimentos fosse outra. Não sou religioso para acreditar em destino ou coisas do gênero. Acredito que cada homem e mulher traça seu próprio futuro com as escolhas que têm em mãos. Penso também que embora estas sejam sempre limitadas jogamos com as cartas que temos. E foi em uma noite de jogatina em um canto infecto de Moscou que conheci Ivanna. E foi Ivanna com seu indefectível olhar ferino e sua segurança intimidadora quem me arrebatou instantaneamente.
Naquela mesma noite tornamo-nos amantes. Jovens e idealistas, o que nos uniu além da atração mútua foi o desejo de mudança que compartilhamos á época e ainda hoje. Tínhamos a cabeça nas nuvens e o mundo a nossos pés. Embora o tempo tenha roubado um pouco do ímpeto juvenil não nos roubou a convicção nem nos obliterou o nosso objetivo principal. Ivanna era uma pária assim como eu. Lutamos com outros semelhantes a nós e em nossas vidas pouco temos além de uns aos outros. Estamos juntos na luta por cinco anos desde então...
Por volta das 9 da noite ela chega. Despe seu casaco e olha ao redor, me lança um olhar provocativo enquanto se aproxima da lareira. -És um homem único Ivan! - Diz enquanto coloca mais uma acha de lenha para queimar. Faz muito frio mas sua presença e dominância já a mim são suficientes para aquecer o ambiente. Ela me parece mais feliz hoje do que o habitual, certamente porque finalmente eu consegui os explosivos de que tanto precisávamos para cumprir nosso plano. -Todos somos únicos, mesmo que medidos pela régua da nossa mediocridade. - Ela sorri da minha tirada. Coloco o rifle sobre a mesa e me aproximo. Sinto o cheiro almiscarado que seus cabelos negros como a noite exalam e fico contente por estar aqui. Já faz algum tempo que aproveito e tento prolongar ao máximo esses momentos. Já faz algum tempo que penso mais na morte. Já faz algum tempo que passei a sentir mais o tempo. E o tempo se desfaz como areia fina sob meus dedos ao sentir algo se aproximando. Não sei o que é mas às vezes acordo de madrugada assustado. E vejo fantasmas no escuro. E vejo o rosto de Ivanna. E quando estou com ela abraço seu corpo. E me acalmo. E durmo novamente meu sono agitado e febril.
Já é madrugada agora. Sei que é inútil tentar dormir. Meu estado de espírito é agitado pela expectativa do que está por vir. Enquanto observo Ivanna aconchegada em meus braços na cama já não mais escuto os sons advindos do exterior.Tudo se resume a este momento e a este lugar. Penso que poderíamos ficar assim para sempre, congelados nesse momento como uma pintura de Goya. Não seria mal, seria? Temo pela manhã que se aproxima. Nosso plano meticulosamente planejado durante meses será realizado. Explodiremos duas das principais pontes da cidade enquanto os camaradas irão se reunir e marchar para o palácio em um golpe final. O maldito será destronado e o nosso sonho de equidade se realizará. Ao menos é nisso que Ivanna crê. E ela crê no nosso plano e triunfo de todo o coração. Sei disso ao ver o fogo em seus olhos enquanto fala. É o fogo de quem daria a vida pela causa sem hesitar e isso me assusta às vezes.
Posso lutar e abater 20 ou 30 homens sem pestanejar na batalha. Já fiz escaramuças perigosas e saí delas relativamente ileso ao menos uma meia dúzia de vezes. Minha motivação para voltar está aqui ao meu lado. E é o medo de a perder que me assusta mais do que tiros ou a explosão de granadas. A vida de Ivanna é a causa e minha vida é Ivanna, tenho um conhecimento empírico disso e aceito com sobriedade o fato.
Vejo os primeiros raios de sol entrando pela janela. Ela sorri enquanto dorme. Conjecturo quais seriam seus sonhos e faço uma ideia aproximada. Em sua mente a vitória está próxima, ela tem uma fé firme na causa e no que faz. Eu nem tanto. Sou pragmático e racional demais. Penso nas probabilidades e a sorte ou a fé não entram neste cálculo. Sei que há um risco enorme no que faremos hoje e já vi muitos camaradas morrendo. A morte encerra o desconhecido mas o desconhecido faz parte da vida. A supressão do ser, do existir e do sentir isso sim me deixa angustiado. Não mais ouvir a voz de Ivanna, sentir seu cheiro e me alimentar de sua seiva isso sim é a coisa que mais me amedronta. Acordo Ivanna a contragosto. -Já é hora... - Digo em um tom baixo intimamente esperando que não me ouça. Ela me encara e vejo o fogo novamente em seus olhos. Respiro fundo e meu coração treme como se fosse a última vez…