A FORÇA DA ILUSÃO

A FORÇA DA ILUSÃO

"Fininho" amanheceu mais amargurado do que nunca... precisava "dar um jeito" na Vida, aqueles suplício não podia continuar. Seu vizinho abusado tinha passado de todos os limites e olha que humilhação -- na existência obscura de Esmilinguido Forte dos Reis -- desconhecia o que eram limitações. Como "não há Mal que nunca se acabe", no dizer do populacho, "Fininho" esperava um sinal dos céus para iluminar seus tristes dias... e êle veio pelas mãos do menino-jornaleiro. Uma academia de lutas marciais abrira recentemente, novidade no bairro, com o professor, espetáculo de músculos e força, explicando que qualquer um poderia se tornar um campeão.

Era disso que precisava: um "gladiador" para enfrentar aquela "montanha" de prepotência, ignorância, falta de educação e um machismo insano, "qualidades" (?!) tão apreciadas pela maior parte das mulheres e que Esmilinguido despossuía. O vizinho era forte, alto e bonito (ou quase)... já êle exatamente o inverso ! O cachorro do "Hulk" acabara de "enfeitar" o portão de sua casa novamente e êle, furioso, sem poder fazer nada "para dar o troco":

-- "Olha aí, "lombrigão"... meu "Satanás" te deixou um presente ! Isso aí no pão é uma delícia"!

E a gargalhada, dividida em "gargarejos", lhe soava como pedradas no seu Ego esmagado pelo peso da impotência. A vergonha de sua fraqueza era fardo cada vez mais cruel no lombo maltratado do "saco de ossos". Tomou logo a decisão... dirigiu-se à Academia "Força Total", disposto a contratar os serviços do "Hércules", a fim de dar uma surra monumental no Maciste vizinho, era esse o nome dele !

-- "Bateu na porta errada, mocinho... é você que vai lutar com êle e não eu" !

-- "Professor, eu quero matá-lo de pancada, não morrer tentando lhe acertar um soco" !

-- "Não se preocupe, vou prepará-lo para enfrentar a fera, em pouco tempo" !

-- "Isso é impossível, só mesmo um milagre" !

-- "Meu nome é "Spartacus", meu jovem... conheces a história dele ? Impossível é você continuar aguentando os desaforos do desgraçado, vais morrer do coração em pouco tempo" !

Era um bom argumento... inscreveu-se e recebeu a primeira lição, um sonoro tapa na face esquerda.

-- "Esteja sempre preparado para uma agressão" !

Recebeu a segunda lição em seguida... novo tapa, agora do lado direito. O ódio coloriu-lhe o rosto de vermelho e azul e êle revidou com um chute na canela do instrutor. Este gritou de dor, exclamando:

-- "Que merda é essa ? Ficou maluco" ?!

-- "É a prova de que eu aprendi a primeira lição" !

Riram os dois e o lutador viu que o futuro aluno tinha disposição... ficaram amigos e o professor o convenceu que algum exercício só lhe faria bem. Viu na academia homens e mulheres com seu porte físico e concluíu que poucos ali queriam se transformar num monte de músculos e agressividade, como o rude vizinho. Começou a gostar de si, passou a encarar o vizinho e este notou que havia "alguma coisa errada" com o antes "tampinha" medroso. Aquilo "não cheirava bem" ! "Fininho" questionava o instrutor, dia após dia:

-- "E a minha vingança... o amigo esqueceu dela" ?!

-- "NE-GA-TI-VO... começamos hoje mesmo ! Siga o desgraçado, anote hora e lugar para onde vá, sem enganos" !

Tempos depois, com a vida do mastodonte escrutinada hora por hora, sucedem estranhos acidentes com o "Golias": na corrida diária na praça arborizada êle leva homéricos tombos sempre no mesmo lugar, invisível linha de pesca embaraçando-lhe os passos. Atrás dele, um atleta completo o ajuda a levantar-se, preocupado:

-- "O amigo está se sentindo bem ? Caiu à toa... e já é a terceira vez, só hoje" !

Mais tarde na padaria, um pequeno vaso de plástico com terra e flores passa zunindo por sua cabeça oca, o mesmo halterofilista 2 passos à sua frente:

-- "O senhor de novo, hein ? Você é mesmo azarado" !

Ao voltar para casa Maciste encontra a porta de seu velho carro DKW "Vemaghette" toda cheia de merda. O carro era uma relíquia, presente do avô, mas nem sua namorada entrava nele. O "ogro" só o usava para economizar passagem, quando ía trabalhar. Na empresa faziam chacota dizendo que "êle é quem transportava o carro" ! Um garoto da vizinhança "dedurou" os autores:

-- "Eu vi, moço... estava andando de skate por aqui ! Foi um fortão grandão, 'tava acompanhado de um "tampinha" parecido com o Costinha" !

Desistiu de ir pra firma com o "carango" mas, chegando lá, descobriu que as desgraças daquele dia estavam só começando. Aglomeração na porta da empresa, comentários e risadas... abrem alas para êle, que leva um choque: foto de halterofilista abraçado com uma jovem " do tipo vagaba", porém trocaram a cara do "broncossauro" pela dele, corpos bem parecidos. A namorada ligou em seguida, puseram a foto sob a porta da sala de sua casa... estava tudo acabado entre êles ! A santa mãezinha também ligou pro filho amado e idolatrado:

-- "Francamente, "Cistinho"... como você fez uma "cachorrada" dessas com a Lili ? Ficaste 6 ANOS sozinho" !

-- "Mamãe, aquilo é um truque, uma "montagem" !

-- "Miserável, é você na foto... como tens coragem de negar" ?!

Trabalhou contrariado, o dia não terminava nunca ! Dormiu cedo, acordou mais cedo ainda, para lavar o carro. Esmilinguido não perdeu a chance:

-- "Isso aí no pão é uma delícia, "Cistinho" !, usando o apelido que a mãe lhe dera e que êle detestava.

-- "Não abusa, "esqueleto ambulante"... hoje eu não 'tô pra conversa" !

Entretanto, como o Destino adora "dar uma mão" (ou maçã, abacaxi !) para apressar desgraças, eis que surge na frente da casa do Esmilinguido seu professor. Este leva um susto... pelas "suas contas" o vizinho deveria estar lá no emprego. Cochicham, preocupados:

-- "O que houve, êle não foi trabalhar" ?!

-- "Disse que passou mal a noite toda, nem dormiu" !

Nisso, a "jamanta sem rodas" virou-se e flagrou os 2 em íntima conversa. Uma "campainha" soou no cérebro debilóide, aquela figura êle conhecia, "tropeçara" nele várias vezes durante a semana. Rápido na reação, o instrutor adiantou-se:

-- "Sou professor de Artes Marciais, abri Academia no bairro e estou "panfletando" aqui na vizinhança. Temos todas as atividades lá, inclusive boxe" !

-- "Beleza, fui campeão escolar estadual... quero voltar a treinar, estou mesmo precisando "dar umas porradas" em alguém"!, e olhou sério para Esmilinguido.

-- "Então, passe lá no sábado... a primeira aula é grátis" !

"Fininho" tremeu, o olhar lhe deu medo, mas seu instinto de sobrevivência produziu forças para "blefar":

-- "Também entrei em torneios na escola, fiz 23 combates, fiquei famoso, todos falavam de mim" !

-- "Aaaahh, ah, ah, ah..."!, "relinchou" o "armário", os músculos rindo junto, a saltar da camiseta-regata.

-- "Você, "caveira ambulante", participando de lutas... conta outra, "micróbio"!, e entrou em casa, batendo a porta.

-- "Que história é essa, camarada... explique isso direito, você não tem cara de atleta" !

-- "Era "queda de braço", fui obrigado a me inscrever, eu detestava todo tipo de esporte. Perdi todas as disputas, até para meninos menores. Fiquei famoso como o "rei dos perdedores", virei motivo de piada. Me chutavam a canela quando eu estava para vencer... a professora dizia que isso era desculpa minha, que eu era muito frouxo" !

-- "PQP, perdi um campeonato nacional ano retrasado porque não sabia desse truque. Mas, prepare-se, vais lutar com esse troglodita na primeira oportunidade" !

-- "Então, vou preparar meu testamento... mande pra lá um "rabecão" e providencie uma pá para recolher meus pedaços" !

-- "Nada disso... meus planos não falham, podes dormir tranquilo, sábado será uma tarde inesquecível. Vais ficar alerta na academia, assim que êle chegar me avise e "suma"... bote as luvas e espere meu sinal para entrar no ringue" !

Dito e feito... no sábado o "Shreck" compareceu já de sapatilhas, short profissional, luvas penduradas no pescoço. O professor o recebeu cordial, lhe ofereceu chá quente. Recusou:

-- "Chá é coisa para mocinhas... se tiver conhaque, eu quero" !

-- "Amigo, chá é calmante, ajuda na digestão e é diurético" !

Maciste aceitou constrangido, era bom não contrariar o instrutor. "Chá batizado" e o ex-boxeur viu o teto rodar e as luzes do ringue dançarem cancan. Um longo apito e surgiu no tablado um magrelo totalmente vestido, sem uma nesga de pele aparecendo, exceto boca, nariz e pescoço, olhos arregalados e todo "elétrico". O gigante ainda se apoiava nas cordas, mais tonto do que cachaceiro na madrugada, quando recebeu as primeiros sopapos do "grilo falante":

-- "Reage, "girafão", mostra que você não é só tamanho" !

Cambaleante, Maciste se queixa ao juiz da "luta":

-- "Mas, assim não vale... são 3 contra mim" !

O funcionário da academia, sabendo das "manhas" do instrutor, segreda-lhe bem baixinho, entre dentes:

-- "Preste atenção, só vou falar 1 vez... acerte o DO MEIO" !

Soou o gongo para o segundo round, o magrelo "sambando" mais do que Cassius Clay... uma saraivada de socos leves atingiu a cintura do grandalhão, embora sem muito efeito.

-- "Isso parece divertido"!, gritou Esmilinguido para o instrutor num canto, responsável pelo gongo e pela luta.

-- "Não por muito tempo" !, retrucou êle, berrando.

-- "O que quer dizer com isso" ?!, replica o desnutrido, parado no centro do tablado. Nem houve tempo para respostas, um "petardo" de 200 quilos o dobrou ao meio, o estômago colou nas costelas, o fígado subiu para a garganta e os rins desceram até o saco escrotal. Êle "voou" metro e meio, atravessou entre as cordas e caiu desacordado na passarela lateral. Quando acordou ouviu do instrutor a lição nº 1: "esteja sempre preparado para uma agressão... foste conversar e quase que tu morres no ringue" !

Sem poder dirigir, Maciste foi levado pelo funcionário-juiz que, sabendo das "trapaças" do instrutor, "tirou sarro" do "dinossauro":

-- "Você não parece nada bem... por acaso usa drogas" ?

Na manhã seguinte, acordaram ambos muito mal dispostos, Maciste ainda sentindo os efeitos do narcótico legal, zonzo e inseguro e "Fininho" todo enrolado num cobertor, o rosto amarelecido, olhos mortiços, cara de quem foi atropelado, embora com estranho sorriso, de orelha a orelha. Maciste estava com a sensação de que fôra iludido... mas como ? Por quem ? Aquele magricela não tinha coragem para "aprontar" tanto assim com êle. Seria que teria ?

Seu prejuízo fôra enorme, a mãe quase o excomungara, a namorada não queria vê-lo nem vestido de Messias e, na empresa, o clima era péssimo, um "calvário". Os dois se miraram longamente, tentando ler o pensamento um do outro. De repente, Maciste levanta a voz:

-- "E aí, vizinho, BOM DIA... está um belo dia hoje" !

A frase ecoou pelo cérebro de "Fininho", percorreu hipocampo e cerebelo, antes dele compreender a saudação.

-- "Você disse "BOM DIA"?! Eu te ouvi dizer "Bom Dia" ?!

-- "E qual é o problema ?! Bons vizinhos se dão "Bom Dia" !

Esmilinguido lembrou a lição número 1, devolveu o cumprimento e ameaçou entrar, aquilo parecia "armadilha".

-- "Ah, "Fininho", espere um instante... tenho sido meio rude contigo, acho até que exagerei algumas vezes. De agora em diante prometo mudar, as coisas serão diferentes" !

Não viu sarcasmo algum nas palavras do sujeito, mas tossiu e engasgou de incredulidade. Ou Maciste se abatera de verdade com o sucedido ou supunha que êle, "Fininho", estava ficando forte o suficiente para encará-lo. O fato é que as "sacanagens" do vizinho cessaram e "Fininho" agora não faz mais jus ao apelido.

"NATO" AZEVEDO (em 19-20/junho 2020)