CONCERTO PARA PIANO SEM CONSERTO EM RÉ MÉDIO
José, certa manhã, ao acordar de sonhos inquietantes, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num detetive particular. Particularíssimo: sem vocação, curso, licença, e nem escritório. E agora, José?
Após o estranhamento, veio a aceitação conformada e a busca de uma oportunidade para exercer sua nova profissão. Lembrou-se, então, do Silva.
Marchou, usando sua experiência de reservista, até o escritório do amigo Silva, afamado detetive particular, especializado em roubos de beijos e assaltos à mão desarmada. Lá chegando, propôs uma cumplicidade, entrando ele, José, com sua longa, larga e profunda inexperiência, e mais a total inaptidão para qualquer serviço útil ou inútil.
Silva, antevendo a brevidade da parceria, aceitou-o como sócio desde que se encarregasse dos serviços mais importantes como a faxina do escritório, ser “cafetão” (fazedor de café) e entregas como office-boy.
No mesmo dia, à tarde, enquanto Silva iniciava uma nova investigação sigilosamente secreta, José foi fazer a entrega de um relatório a um cliente.
Entrando na casa, foi recebido pelo morador:
– Por que você entrou pela janela?
– Porque a porta está fechada.
– Puxe uma cadeira e sente!
– Não tem cadeira.
– Então puxe o sofá e fique em pé.
– Vim trazer a investigação sobre sua esposa.
– Eu não sou casado.
– Nesse caso, damos um desconto de cinquenta por cento.
– Não te contratei: quero um desconto de cem por cento.
– O senhor não é Fulano de Tal?
– Não, sou Beltrano de Qual. O Fulano é meu vizinho.
– Espero que a janela dele esteja aberta.
– O senhor é detetive particular ou pulador de janelas?
– Uma profissão não exclui a outra. Aqui meu cartão: Silva & Associados. Eu sou José Associados, ao seu dispor.
– Gostaria de te contratar para investigar o meu cachorro.
– Qual raça?
– Um vira-lata com pedigree.
– Vira-lata é especialidade do Silva. Ele está fora, num caso na casa da Mãe Joana.
– Quando volta?
– Assim que conseguir fugir da casa.
– Enquanto isso, continuo desconfiando dos passeios do meu cão…
– Tem poste na sua casa?
– Não.
– Então é isso! Não se preocupe, os cães são fiéis, exceto os infiéis.
– Isso me tranquiliza.
– Seu vizinho, o Fulano, está em casa?
– Não sei, ligue para ele.
– O senhor tem o telefone dele?
– Não, serve o meu?
– Volto amanhã. Até lá você já deve saber se ele está em casa.
– Volte depois de amanhã porque amanhã vou visitar o Fulano.
– Não posso, é minha folga como pulador de janelas.
– Venha então na quinta-feira.
– Não posso, é minha folga como detetive. Posso vir na sexta?
– Não. É minha folga da casa. Deixe então o relatório no piano do outro vizinho, o Sicrano, que ele entrega para o Fulano.
– Por que no piano?
– Porque ele é pianista. Já “tocou piano” na Polícia Federal.
– Tchau! Me acompanha até a janela?
– Saia pela porta e não preciso te acompanhar.
José, no dia seguinte, ao acordar de sonhos inquietantes, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num piano velho e desafinado, vendido exclusivamente nas “Organizações Tabajara“.
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OBS: Conto finalista do Concurso Literário da Revista Piauí - EDIÇÃO 165 | JUNHO_2020