O HOMEM-QUASE

Meu nome é Kleyton, mas sou mais conhecido como O Homem-Quase. Explico.

Meus pais, adolescentes viciados em festas regadas a álcool e sexo tomaram uma decisão depois daquele encontro furtivo no banheiro; continuariam a se ver. Um namoro feito de descargas hormonais. Depois de um tempo decidiram atar um sério compromisso e compraram até aliança de prata.

Firmaram um namoro.

Davi, dezessete anos, meu futuro pai, trabalhava de entregador de pizza. Rayssa, de quinze, minha futura mãe, só estudava. Ou melhor, quase estudava, já que duas notas não eram tão boas e a escola mais lhe parecia uma passarela do que um lugar de aprendizado.

Entre encontros e baladas, uma noite Davi chegou em sua moto diferente. Estava com outras intenções que não incluíam festas.

Rayssa subiu na garupa e se surpreendeu ao perceber que seu namorado não se dirigiu ao fluxo que teria numa tabacaria do outro bairro, mas foram para um rodízio e lá se serviram de boas carnes.

Davi falou de projetos, planos e aspirações diversas com Rayssa, que encheu os olhos de lágrimas quando pensou nos sonhos dela. Ambos compartilharam da mesma emoção e naquela noite não houve balada nem álcool, somente o olhar e as mãos entrelaçadas numa mesa com dois jovens mirando um futuro perfeito... juntos.

Na verdade, quase perfeito.

Rayssa sentia dores e enjoos constantes. Sua menstruação sempre era desregulada, porém naquelas semanas lhe sobreveio um pensamento não muito bom: receava estar grávida.

Fez o exame: positivo.

Minha futura mãe ficou muito apavorada. A notícia foi um baque para ela que sempre desprezava tomar anticoncepcionais, pois cria que iria engordar e perder o corpo jovem e formoso que tinha naquela idade.

Porém, precisava contar para Davi. E contou.

Na esquina da escola ele soube da notícia. Fez ela descer da moto e pararam numa praça para conversar. Davi ficou louco e sentiu uma vontade enorme de gritar com Rayssa. No entanto, pensou duas vezes e a levou para casa. Seus pais não estavam lá e obviamente poderiam dialogar mais calmamente num lugar reservado.

Bom… quase calmamente. Se não fosse o tapa que Rayssa deu no rosto de Davi e ele retribuiu o gesto com um soco no olho, fazendo ela se desequilibrar e quase derrubar a televisão da sala. Os dois se abraçaram chorando. Meus futuros pais não sabiam bem o que fazer. Davi a deixou em casa e mandou que falasse a mãe que seu olho roxo foi um machucado que teve quando pegava algo da prateleira de cima do armário. A desculpa funcionou, mas não aliviou a dor de Rayssa, nem a culpa de Davi.

Eu? Eu estava lá. No meu canto. Se pudesse criar expectativas ali, diria que tudo daria certo.

Ou melhor, quase daria.

Após muitas mensagens não visualizadas e constantes ligações não atendidas, Davi quis falar com Rayssa pessoalmente. Disse que não atendera porque também preferia conversar olhando nos olhos dele.

Depois de muito choro e diálogo, meu futuro pai foi até dona Eulália, mãe da adolescente e pediu a mão da adolescente em casamento. Ela questionou o porquê tanta pressa e então tiveram que dizer a verdade.

Rayssa morava somente com a mãe. O pai havia falecido num acidente de trabalho e então a família vivia mais da pensão do morto do que com o próprio salário de cozinheira de dona Eulália.

Já o pai de Davi era relapso e dizia que "Leis e virgens foram feitas para serem violadas". Cansou de ver sua mãe chorando no canto da sala reclamando para a amiga das traições do marido.

Eulália, Rayssa e Davi conversaram na sala sobre a gravidez. Foi um golpe duro para a mãe da adolescente, haja vista tinha certeza de que a filha seria uma moça direita e bem-sucedida.

Ou melhor, quase tinha. No fundo, desejava que a menina ficasse por mais tempo em casa para que o benefício fosse prolongado e Eulália não se sentisse sozinha. Porém, entre choros e palavrões, aceitou o pedido de Davi, conquanto eles fossem morar por ali e construíssem um puxadinho na casa de Rayssa mesmo.

Comecei a crescer no ventre de minha futura mãe. E cresci saudável.

Ou melhor... quase saudável.

Em um ultrassom a médica informou que via uma pequena deformidade na região do meu crânio e não sabia precisar o que era.

Rayssa começou a passar muito mal e ficar nervosa. Chorava em momentos inesperados e só sentia fome e preguiça. Ela e meu futuro pai brigavam muito.

Davi teve que dobrar o tempo de serviço. Trabalhava no supermercado de dia, descansava a tarde e fazia as entregas de pizza a noite. Meu futuro pai foi um jovem inconsequente, todavia sempre repetia todas às vezes que se viam que a amava com todas a forças e que só tinha olhos para ela. Um homem totalmente dedicado a minha mãe.

Ou melhor… quase totalmente.

Algumas amigas disseram para Rayssa que Davi não estava realmente trabalhando a noite. A semente da dúvida plantada no coração da minha futura mãe não fez bem. Ela quase provocou um aborto no banheiro de casa. Foi parar no hospital com dona Eulália, mas para sua sorte e minha, o médico disse que não era nada grave e que devia evitar passar por estresses.

A barriga da minha mãe cresceu. Cresci junto. Deram-me nome quase estrangeiro. Kleyton. Diziam que seria em homenagem ao pai de Rayssa, que possuíra o mesmo nome.

Confrontado com as queixas sobre traição, Davi pôde provar que estava trabalhando a noite e que em momento algum pensou em abandonar o barco.

Se abraçaram, perdoaram e marcaram a data do casamento.

Rayssa voltou a conversar com Davi sobre os sonhos. Faculdade, emprego, empreendimentos, apartamento, carro, roupas novas, viagens e toda a materialização de suas aspirações foi colocada na mesa juntamente com as do seu agora noivo.

Faltando um mês para meu nascimento, meus pais casaram.

Minha mãe estava linda. Meu pai estava quase bonito, mas cortou o cabelo.

O dinheiro que tinham quase deu para fazer uma festa num salão chique, porém fizeram numa igreja pequena próxima de casa onde dona Eulália congregava. O pastor fez o casamento dos dois jovens descrentes. Era nítido perceber que ele estava quase alegre com a situação.

Davi e Rayssa quase viajaram para uma lua-de-mel. No entanto, decidiram utilizar o que sobrou para reformar a casa e comprar as coisas para o bebê.

No caso, eu.

E me deram do melhor. Ou quase melhor.

Quando nasci deu tudo certo. Quase tudo.

Quase me enforquei com o cordão umbilical e minha mãe quase morreu no parto.

Havia em meu crânio um estranho inchaço e os médicos tiveram que fazer vários exames para descobrir o que era. Na cirurgia o bisturi quase rasgou meu rosto devido um descuido do doutor. Removeram um caroço da minha cabeça, porém deixaram uma cicatriz por causa do corte.

Quase fiquei deformado, todavia sobrevivi.

Com o passar do tempo meus pais quase não brigavam. Apenas quando o assunto era minha avó que se metia muito na relação dos dois e ficava mais tempo comigo do que eu com minha mãe. As festas tiveram que cessar e minha mãe teve que terminar os estudos. Quase não termina.

Quando fui para a escola, muitos questionavam o porquê daquela cicatriz no meu rosto. Eu dizia o motivo. Quase ninguém brincava comigo ali no fundamental. Entretanto, fiz alguns amigos e sempre ficava perto deles.

Chegando no ensino médio, quase todas as garotas se afastavam de mim. Exceto Andressa. Ela parecia gostar de ficar perto e conversar comigo. Eu também gostava dela.

Tentei fazer a prova do ENEM. Quase perdi o prazo de inscrição. Fiz a prova. Por mais alguns pontos eu conseguiria ingressar na faculdade. Fiquei no quase.

Andressa continuou minha amiga. Sempre tive vontade de chegar nela e pedi-la em namoro. Uma vez eu quase fiz isso, mas não tive coragem. Isso prosseguiu por três anos até completar o ensino médio e nunca mais eu ter contato com ela.

Inscrevi-me novamente no ENEM. Quase perco o horário, porém consegui entrar antes do portão do local da prova fechar.

Tirei uma boa pontuação. Fiquei muito feliz. Minha mãe Rayssa e meu pai Davi, já numa situação financeira melhor, comemoraram comigo. Minha avó Eulália saltava de alegria, e dizia que eu seria o primeiro daquela família a fazer faculdade, uma vez que Rayssa quase fez, porém, as coisas apertaram muito no bolso e ela teve que trabalhar para ajudar a pagar as muitas dívidas de cartão que foram feitas para sustentar quatro pessoas morando naquela casa.

Ah sim. Quase esqueci. Minha avó perdeu o benefício da pensão do meu falecido avô.

A universidade que iria escolher ano passado estivera na minha cabeça por muito tempo. Lá só entrava filho de rico ou gente muito inteligente. Estudei bastante somente para me matricular nela.

Quase consegui. As vagas tinham esgotado. Tive que escolher outra, quase do mesmo nível.

Pelo menos estava cursando o que eu queria. Porém, devido a muitos problemas financeiros, já que a bolsa só cobria metade da mensalidade, com o falecimento da minha avó e a depressão da minha mãe tive que trancar a matrícula no último semestre. Todavia com muito apoio e a união familiar as coisas se reestabeleceram e pude voltar a estudar depois de um ano. Quase não me formei.

Fiz várias entrevistas de emprego. Em muitas quase passei.

Namorei algumas moças. Muito poucas, na verdade.

Ou melhor… quase namorei.

Eu só fiquei de rolo com uma e outra e não tive coragem de dar continuidade, mesmo que a última quisesse algo mais sério comigo.

Entrei numa empresa. Dei meu melhor. Quase fui promovido. O chefe escolheu outro em meu lugar. Contudo, eu era feliz. Estava vivo. Isso é que o importa.

Ainda morava com meus pais que estavam quase se separando. Que bom que ficou no quase, pois eles sempre voltavam.

Certa vez me inscrevi num concurso público. Quase fui aprovado.

Tentei tirar a carta. Quase fui reprovado.

Noivei. Quase consegui casar. Terminamos o noivado.

Tive um lance numa festa. Engravidei uma moça que eu quase gostava. Fomos morar juntos. Quase tive um filho, mas veio uma filha que quase puxou meus olhos.

Quase comprei um carro zero. Contentei-me com um usado adquirido de um quase amigo.

Quase comprei uma casa. O financiamento não deu certo na época, então morei de aluguel com minha família por um bom tempo.

Quase a promoção veio novamente, mas trocaram meu chefe e colocaram uma mulher que maltratava muito os funcionários.

Pedi as contas.

Abri um negócio próprio. Quase deu certo.

Enfim… eu tinha muito mais coisas para contar. A vida é um constante "quase", não é? E nem sempre depende do nosso esforço ou atitude. Algumas coisas simplesmente irão ficar para sempre no "quase" e devemos nos conformar com isso. Só de estar vivo já era bom demais para ser verdade.

Por isso me chamo O Homem Quase. Porque em minha vida, desde o planejamento dos meus pais para que eu viesse ao mundo até a minha velhice… quase tudo deu certo. E toda essa história é a mais pura verdade

Bom… quase verdade…

E confesso que seria interessante se fosse, porque algumas coisas infelizmente não ficaram só no quase.

A traição do meu pai antes do casamento... Fora verdade.

Minha mãe ter se desesperado quando ele a abandonou. Também fora verdade.

E até o dia em que minha avó entrou em casa e encontrou a filha sentada no vaso sanitário e chorando muito, onde havia deixado no chão uma cartela de remédios.

Rayssa provocou meu aborto naquele dia.

Esse deu muito certo, tornando-me, assim, numa quase história.

Leandro Severo da Silva
Enviado por Leandro Severo da Silva em 03/06/2020
Reeditado em 09/06/2020
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