Pele e osso
"Escute, você vai morrer. Antes, muito antes do que pensas, estarás morta, como o cão que você, por pura maldade, deixou definhar até sucumbir. Desgraçada!". Era isso o que dizia o bilhete que o filho da mulher apanhara no chão, próximo à porta, pela manhã, quando saía para comprar pão. O café desta manhã não saiu. A mulher e o casal de filhos ficaram, até que seus estômagos os impelissem a buscar qualquer coisa para substituir os pães que não chegaram, sentados à roda da pequena mesa, lendo e relendo as malditas palavras que despertaram, em todos, medo e preocupação. Mas, na consciência da matriarca, as palavras do bilhete despertaram também certo conformismo, como se fossem a mensagem de uma justa sentença. A menina era cega. O menino, quando primeiro leu a mensagem funesta, omitiu, por respeito à mãe, a última palavra, lendo-a para si, baixinho. Ele, apesar da pouca idade, tinha consciência de que, fatalmente, sua mãe um dia morreria, sabia também, embora não ousasse dizer, que ela era má; mas não admitia ser ela desgraçada. Esta fora, aliás, a última palavra que seu pai, antes de os abandonar, dissera à sua mãe, numa briga derradeira e, por isso, tal palavra ficou guardada na memória do pequeno como a expressão máxima de uma coisa ruim. A pequena família, desde então, vivia dos óbolos estatais.
Viviam numa casa pequena, com pouco esmero, numa rua sem saída de um bairro de subúrbio. Esta casa fora deixada pelo avô para os pequenos, como herança. O velho morrera por complicações cardíacas decorrentes, segundo a nora dizia para os vizinhos, das constantes desavenças com o filho. Desde que o marido a abandonara, a mulher vivia com os filhos e dois pequenos cães. Não se passaram três meses desde a partida do marido para que a mulher, amargurada, caísse numa profunda e devastadora depressão. Uma crise de melancolia, como diria seu sogro se estivesse vivo. Não viviam gozando de fartura, mas também não passavam necessidades; o menino, aliás, aparentava até estar engordando. As crianças tinham a responsabilidade de cuidar dos animais, porque a mãe, desde que ficara doente, não se importava mais com eles. Mas, dando mostras de um comportamento doentio, a mulher estranhamente irritava-se quando as crianças tinham de dar comida para um dos cães. Era o cachorro do marido.
O bichinho era mantido numa curta corrente enferrujada, presa a um gancho de ferro debaixo de uma estrutura de tijolos que sustentava a caixa d'água da casa. O único sinal aparente de conforto que o cãozinho dispunha, era um colchão velho colocado debaixo do reservatório de água que, com as intempéries do clima, estava ora encharcado, ora infestado por pulgas e toda sorte de insetos que se alimentavam de sangue e, para isso, mantinham abertas as pequenas feridas no corpo da vítima. A sujeira não era constante, era crescente. A mulher deu ordens aos filhos para o deixar padecer lá em cima, na laje da casa, de modo que os latidos da pobre criatura que, com o tempo, iam ficando cada vez mais fracos e imperceptíveis, não a impedissem de ouvir claramente os diálogos da sua novela.
O outro cão era criado sem coleiras, corria, livre, por toda a extensão do pequeno terreno, subindo, aos saltos, até a laje, onde jazia às mínguas seu companheiro de outrora. Era gordo, porque o serviam com fartura. E, de tanto receber comida assim, em abundância, adquiriu o péssimo hábito de, no instante em que via cair uma lasca de carne, um pedaço de pão velho, já endurecido pela passagem da noite, ou um trunfo qualquer de comida próximo ao cãozinho acorrentado, de um salto, abocanhava o alimento antes que o animal suplicante pudesse, com esforço heroico, levantar-se do seu leito imundo e, bambo das pernas, tentar recolher sua porção. Com o avançar dos dias, contudo, não era raro vê-lo desistir de levantar-se, tamanha era a fraqueza que o consumia, pouco a pouco. Os vizinhos diziam, ao ver o pobrezinho morrendo de fome, que, no instante em que ele os via, só faltava pedir.
Na semana que antecedeu a sua morte, o pelo que cobria seu corpo era tão escasso que, para quem o via agora, a criatura desgraçada parecia não ter pelos. Os sinais vitais da sua respiração, vistos através do fraco movimento do seu tórax, anunciavam uma morte lenta e dolorosa. As silhuetas das suas costelas eram tão nítidas que podiam ser contadas por uma criança cega. Na noite anterior à sua manhã derradeira, ele foi assolado por mais um ato de maldade. A mulher, que raramente subia até a laje da casa, decidiu, acompanhada do filho, fazer uma limpeza no lugar. Acabara de anoitecer. Estava frio. Primeiro, a megera ordenou ao filho para que afastasse as velharias que cobriam grande parte da extensão do piso, de modo que eles pudessem lavar o chão sem impedimento. Depois, vieram com a água.
Conectaram uma mangueira velha num bocal instalado entre os registros do reservatório de água, logo acima onde jazia o cãozinho em seus últimos momentos de sua existência sofrida. Como o encaixe entre a mangueira e o bocal custava a se firmar, a mulher, áspera, rude, bruta, praguejando o filho, a caixa d'água, a mangueira, a noite, o frio, o mundo, ordenou ao menino que se afastasse e, num esforço para solucionar o problema, pisou, sem querer, nas costelas do cachorro que estava deitado, logo abaixo. Estava escuro e, como dias inteiros transcorreram sem que ninguém ouvisse os latidos mirrados do animal, esqueceram-se dele; a mulher, pelo menos, esqueceu-se por completo. A pisada fora de uma brutalidade tremenda, fora mais um chute no chão na tentativa de aliviar sua raiva e dar uma expressão material às pragas que, constantemente, rogava.
O cãozinho, que começava a se encaminhar para a passagem tênue entre a vida e a morte, teve que voltar, subitamente, porque seu fio de prata, se é que os animais os têm, ainda não se rompera. O golpe nas costelas provocara uma dor lancinante, a última, contudo, que a pobre criatura sentiu. Latiu alto, contorcendo-se ali, deitado no colchão imundo. Tudo fora muito rápido. Como a mulher mantinha o pé próximo do cão, o animal, num último esforço de vingança, cravou seus dentes na panturrilha do seu algoz que, de um movimento brusco, o puxou para longe da caixa d'água. Na medida em que se afastava, trazia consigo o cão preso à sua panturrilha. A curta corrente que prendia o animalzinho tensionou ao máximo. A mulher caiu. "Peste!", gritou, "rápido, moleque, me traga aquele pedaço de pau, que eu quero dar na cabeça desse maldito!". O filho obedeceu, não tinha escolha, se sua mãe não tivesse o gosto de golpear o bichinho infeliz, seria nele, em seu filho, que o faria. Ele sabia que, de qualquer forma, sua mãe teria sua vingança.
Não fora preciso mais do que dois golpes. A mulher conseguira, afinal, ligar a mangueira. Lavou o sangue de sua panturrilha, rasgou um pequeno pedaço do tecido do camisolão que vestia e o amarrou em torno da ferida. Depois, com a mangueira jorrando água com pouca pressão, lavou, com a ajuda do seu filho, toda a laje. Quarenta minutos depois, desceram, deixando sobre o colchão encharcado debaixo da caixa d'água, o cão agonizante que morreria pela manhã. Só perceberam que o cão morrera quatro dias depois, quando o cheiro pútedro que emanava da laje tornou-se perceptível. A mulher, que tinha seu filho fiel sempre ao seu lado, ordenou para que colocassem os restos mortais do animal, com o auxílio de uma pá, numa caixa de madeira que jazia lá pelas adjacências. Levaram-no até um terreno baldio, onde, sem nenhum movimento que lembrasse os rudimentos de uma cerimônia, o deixaram.
A mulher morreu dois meses depois, amordaçada na cama de um hospital psiquiátrico. Os filhos foram para a casa de um parente, no sul. Dizem, aqueles que estiveram com ela em seus momentos derradeiros, que a mulher relatava ter estranhas visões: o espectro de um homem, dizia frequentemente, a visitava todas as noites, tendo nos braços o cadáver de um cachorro. As enfermeiras que fizeram o inventário de rotina no quarto onde a mulher encontrou a morte, registraram que, embaixo do travesseiro da paciente havia um pequeno bilhete que dizia qualquer coisa no tom de uma ameaça de morte e que, como transcreveram nos registros, terminava com a palavra: "Desgraçada!".