O FANTASMA DE VENÂNCIO
Imagine um casal cantarolando uma canção enquanto viajam em seu jipe pelo interior, com os seus dois pares de gêmeos segurando a sexta do piquenique no banco de trás. Imagine o cheiro da comida quente saindo da sexta e se perdendo no vento que vem das janelas. Você deve imaginar uma família feliz, porque foi o que Venâncio tinha um segundo antes de uma van chocar contra ele. Isso mesmo, o outro carro bateu em cheio contra o banco de motorista e não danificou mais nada. A sexta do piquenique se espalhou pelo chão, mas tirando ela, a única perda relevante foi a vida de Venâncio. Morreu antes dos paramédicos chegarem. Fora um bom homem. E dizer isso não soa a elogio fúnebre, pois ele sempre cuidou dos seus e ajudou, como podia aos mais necessitados.
No hospital, enquanto tratavam dos ferimentos leves de Cilena, ela viu o fantasma do marido se aproximar com o rosto fechado. Mas não se assustou. Cuide de nossos filhos, ele disse. Não negue sua ajuda a ninguém, se poderes e, seja feliz.
Dias depois, após se colocar terra sobre madeira, ela sorriu. Ficou com as empresas e o dinheiro do malogrado e foi morar na vinha com os quatro filhos e o homem que a polícia procurava por matar Venâncio. Vendo-a na adega com uma taça, ou a sorrir alto no jardim com aquele estranho, as crianças sentiam a mãe se afastar e tiveram de cuidar umas das outras.
Venâncio lhes apareceu numa noite de chuva. As janelas se abriram de repente, as luzes se apagaram e um vento uivante sacudiu as cortinas. Cilena despertou no quarto de cima. Os meninos gritaram de pavor quando viram o espectro encostado à porta trancada, mas uma das raparigas os acalmou.
–– É nosso pai. –– Fez-se silêncio.
–– O que se passa aí? ¬¬–– Gritou o estranho, do outro lado da porta.
–– Nada. Está tudo bem. –– Responderam.
–– Então fiquem quietos. Vossa mãe manda que durmam já.
–– Sim ¬¬–– e escutaram os passos das chinelas desaparecer no eco das escadas. ¬¬¬
Venâncio os encarava com tristeza e, os meninos tiveram pena. Era, talvez, o fantasma mais inofensivo do mundo.
–– O pai me apareceu na noite de ontem e me contou tudo sobre a sua morte. –– disse a mais velha das gêmeas. Passou os momentos seguintes sussurrando a história para os outros.
–– Que injustiça. Eu vou matar ele! –– disse um dos rapazes.
–– Não seja tolo. Você só tem 8 anos. –– respondeu a menina.
–– E vai ficar por isso mesmo?
–– Eu tenho um plano. –– disse o fantasma. E todos o encararam.
Uma vez por semana, o estranho saía para ir a vila comprar fertilizante e normalmente, voltava a noite, bêbado. Naquele dia, quando ele saiu, as crianças esperaram a mãe sair do quarto e a acertaram com um vaso. Cilena acordou amarrada e amordaçada na adega. Ela sentiu ele chegar, mesmo antes de o ver. Venâncio tirou uma garrafa do melhor vinho, abriu e a inclinou fazendo-a derramar no chão.
–– Desperdício –– ele disse. –– Eu cuidei de você e pra quê? Pra jogares tudo fora? Prometemos cuidar e dar o melhor aos nossos filhos, mas você os esqueceu.
Ela se esforçava pra dizer algo, mas era impossível com a fita adesiva cobrindo a boca. Mas ele parecia entendê-la, mesmo assim.
–– O que disseste? Não, querida. Tu não podes te desculpar. Fizeste um juramento e ao menos que te liberem dele, o único caminho é cumpri-lo. E acredite em mim, você vai cumprir. –– Ela olhou pro chão. O vinho tinha acabado de se derramar. Ele sumira e ela caiu em lágrimas.
O estranho chegou mais cedo do que era esperado. Encontrou suas roupas no tambor de lixo de fronte a casa, e se apressou. A porta da frente estava trancada. Tentou até se lembrar da outra porta. Entrou pelos fundos e escapou de um vaso pendurado sobre a porta. Achou as crianças reunidas num canto da sala.
–– O que se passa aqui? Que brincadeira é essa?, –– mas eles só o encaravam.–– onde está vossa mãe. Cilena? Cilena! E como ninguém respondia, ele agarrou uma das meninas e subiu com ela para ver o quarto de cima. Estava vazio, obviamente. Ele desceu com uma chave de fenda apontada ao pescoço da menina.
–– Digam onde ela está. –– Eles cederam. O estranho foi buscar Cilena, que subiu decidida a castigar as crianças. Mas ao se aproximar deles viu a menina a sangrar com um corte no antebraço e uma faca ao lado. Ao vê-la, os outros foram até ela chorando e a abraçaram.
–– Olha o que ele fez, mãe ¬¬–– teve de ir ao hospital.
No dia seguinte ouve uma briga feia entre as crianças e podiam se ferir se Cilena não descesse pra os advertir. Por um momento sentiu a satisfação de estar a cumprir seu papel como mãe. Mas escutou a gargalhada irritante de Venâncio e o sentimento se foi.
Numa bela manhã, ela acordou e viu as crianças reunidas a volta da cama. O estranho quis expulsa-las, mas ela o deteve.
–– Queríamos nos desculpar –– disse uma delas.
–– É. Fomos crianças tolas.
–– Mas estamos arrependidas e não voltamos a fazer.
–– Sabemos que é uma boa mãe e só quer o nosso bem –– ela os encarou um instante e depois pulou para abraça-los.
–– Oh meus amores. Venham cá. –– Aquela satisfação, outra vez.
–– Temos um presente.
–– É para o dia das mães.
Ela não sabia que era dia das mães mas se emocionou a ver os ingressos para um evento num hotel importante. O estranho desconfiou. Disse que não era seguro, mas ela queria tanto ir que ele cedeu.
Enquanto a mãe se arrumava, a mais pequena das gêmeas escondeu algo, que pertencera ao pai, na bolsa da mãe. Cilena percebeu o peso à mais, mas não se importou. Estava tão animada! O jantar era pomposo e tinha algumas pessoas chiques. Mas só uma chamou a atenção dela. Venâncio. Com seu melhor terno, ele ficava em pé por detrás do estranho a rir-se de suas piadas. Quando se fartou, avançou lentamente na direção da mulher e, captando toda a sua atenção, se alojou em seu corpo entrando pelos olhos e sua boca aberta. O estranho percebeu a mudança.
–– Está tudo bem, querida? –– Ela/ele o encarou com um sorriso sarcástico. A voz grave.
–– Ela foi dar uma volta. Só estamos eu e você, pra falar sobre como você me matou.
O estranho entrou em pânico empurrou a mesa e quis se levantar pra correr, mas Venâncio tirou a arma da bolsa e, discretamente, a apontou contra ele.
–– Quieto –– levantou-se, pousou a arma na mesa e acariciou seu queixo com o garfo e parou pressionando ligeiramente sob a garganta. –– Um homem e uma mulher sobem ao altar, fazem promessas. Depois têm filhos e as promessas ganham vida. Então vem o estranho, com a maldade oculta, como o capim crescendo silenciosamente entre as flores. Sabe? Se crescer um câncer no seio da família, você deverá arranca-lo, ainda que for tarde demais. Por isso eu te trouxe aqui. Afinal esta é uma festa do departamento de polícia.
–– Cilena, me escuta, por favor. Você vai estragar tudo.
–– Silêncio. Cilena é uma boa pessoa. Só precisa de um empurrão.
Ele, suava e gemia como nunca. Olhava por todos os lados as pessoas sorridentes.
–– Vou gritar o teu nome. Não, vou ter com aquele senhor.
Ela deixou a arma sobre a mesa e foi se afastando dele. Mais adiante tinha um velho comandante. Fizeram contacto visual e ela sorria para o comandante que se preparava para a cumprimentar e então ouviram-se os tiros. Dois. Um no ombro esquerdo e outro no peito. O estranho estava em pé a um metro com o revólver quente. Cilena que caiu nos braços do comandante, olhava pasma para o estranho antes de expirar.
Venâncio estava ao lado dela. Pela primeira vez, o estranho o viu e largou a arma.
–– Obrigado pelo empurrão.
Quando na confusão, a ambulância chegou, Cilena já olhava incrédula para o seu corpo estendido. Mas Venâncio a consolou com um abraço. O estranho foi preso. De vez em quando Venâncio ia passar um tempo com ele.
E, por fim promessas pagas e juramentos cumpridos. Na casa da vinha, as crianças cresceram cuidadas e educadas pelos fantasmas da mãe e do pai.
FIM