Aqui-d'el-rei!
- E então, Gaspar de Lemos, o que me conta de sua estadia na Terra de Vera Cruz?
O comandante da nau de suprimentos que acompanhara a expedição de Pedro Álvares Cabral e retornara à Portugal para dar conhecimento das descobertas a el-rei, Dom Manuel, olhou encabulado para o soberano, que o encarava sentado no trono.
- Bem... Vossa Alteza poderá ler um relato mais pormenorizado na carta que lhe trouxe, escrita por Pero Vaz de Caminha - principiou o comandante, que estava de pé, chapéu nas mãos. - Todavia, posso lhe adiantar que fiquei com má impressão do lugar.
El-rei levou a mão ao queixo barbudo.
- O que está me dizendo? O que pensa haver lá de errado?
- Não me julgue mal, Vossa Alteza. Sim, há lá muitas florestas formosas e rios caudalosos, e vários locais propícios para a construção de feitorias. Todavia, pelo que conseguimos compreender dos selvagens que lá habitam, instalar um assentamento permanente nestas terras pode ser mais complicado do que prevíamos.
- Tribos hostis, animais selvagens? - Inquiriu el-rei.
Gaspar de Lemos rodou o chapéu nas mãos.
- Canibais, Vossa Alteza.
Dom Manuel olhou para o comandante estupefato. E depois, deu uma gargalhada.
- Canibais? Pois vamos mostrar a estes selvagens o que podem fazer a pólvora e o chumbo!
O comandante continuou a rodar o chapéu entre as mãos, constrangido.
- Vossa Alteza, nós mostramos, pode ficar certo disso. Quando os selvagens que nos receberam na praia indicaram a localização dos canibais, enviamos um grupo de homens bem armados fazer uma verificação... e eles voltaram pouco depois, espavoridos.
- Imagino que com as cenas dantescas que viram - avaliou el-rei.
- Antes fosse - suspirou Gaspar de Lemos. - Quando os canibais avistaram nossos homens, avançaram contra eles, sem medo. Nossos arcabuzeiros então dispararam, de uma distância inferior a 30 braças... e mesmo atingindo os alvos, os selvagens continuaram avançando!
- Como assim? - Indagou el-rei intrigado. - Os nativos usavam armaduras de algum tipo?
- Não, Alteza... estavam nus. E as balas abriram buracos em seus corpos, ferimentos que seriam fatais em qualquer ser vivente normal. Mas eles continuavam avançando, como se nada tivessem sentido. Só conseguimos parar alguns deles com tiros na cabeça, mas aí nossos homens entraram em pânico e bateram em retirada.
El-rei ficou em silêncio por alguns instantes, matutando no que acabara de ouvir.
- Deveras assombroso, comandante - manifestou-se por fim. - Estou aqui pensando, se pudéssemos trazer alguns desses canibais para Portugal e usá-los contra os infiéis... como carne de canhão, se me entende? Já que parecem não sentir o efeito de disparos de arma de fogo...
Gaspar de Lemos hesitou.
- Não sei se isso seria de bom alvitre, Alteza.
E como el-rei houvesse franzido a testa, acrescentou rapidamente:
- Estou me referindo, naturalmente, a como iremos alimentar esses canibais... durante a viagem, e em Portugal.
El-rei fez um gesto de descaso.
- Se há tantos selvagens por lá como disse, capture alguns e os traga junto com os canibais; assim, terão o que comer. E quando aqui chegarem...
Cofiou a barba.
- Sempre poderemos servir-lhes alguns degredados...
- [28-05-2020]