193- Quarentena

Quando chegou o medo recolheu-se. Ficava horas a olhar para a rua deserta e, por causa do vazio interior, não a via. Uma vez por outra um pensamento cruzava o seu silêncio e escrevia algumas palavras que só ele lia. Depois, voltava à quieta ausência, esse lugar distante onde ninguém chega. Deixou de abrir a correspondência e o mesmo é dizer que já não escutava ameaças de penhora que saiam dos envelopes aos gritos. Agora nem se apercebia deles e, até certo ponto, era bom sabê-los a rosnar como matilha impotente. Também já não esperava a solução dos pendentes. De certo modo, o vírus organizava-lhe o caos, retirara do escritório os que haveriam de tecer as mesmas intrigas. Um destes dias, virá com a refeição, no mesmo tabuleiro de sempre, um recado novo: - Pronto, já pode sair, é de novo um homem livre, acabou a pandemia e a fera que havia mandou flores. Se fosse a si devolvia-as ou, querendo, jogo-as ao lixo e não se fala mais nisso. Ah, e ainda mais um bónus: arquivaram o processo por ter prescrito. Como sei eu de tudo isto? Como o senhor não via o correio li eu todas as cartas.

Edgardo Xavier
Enviado por Edgardo Xavier em 28/05/2020
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