As regras do jogo
"Nas palavras de famosos criminologistas, quando o homem entra pela primeira vez em contato com o crime, tem-lhe horror. Se mantém-se em contato com o crime por algum tempo, acostuma-se a ele e o suporta. Se ficar muito tempo em contato com o crime, acaba abraçando-o e se torna influenciado por ele." — Napoleon Hill
Sempre me inspirei em famosos jornalistas investigativos. Era fascinado com a determinação que aquelas pessoas demonstravam pela verdade. Talvez pelo contraste que tal premissa representasse em um mundo marcado por mentiras e superficialidades.
No entanto, há sempre um abismo entre o sonho e a prática. Após anos de estudo e estágios pouco satisfatórios, lá estava eu, prestes a conseguir a minha primeira reportagem de capa, apenas alguns meses após ter sido contratado.
Quando cheguei naquele lugar, porém, meu entusiasmo começou a ceder lugar para à ansiedade. Entendi prontamente porque outros jornalistas experientes haviam deixado passar a empreitada.
Acho que todos temos alguma noção da agonia e da precariedade de um presídio, mas garanto que somente ao conhecer um local como este de perto que o indivíduo compreende o quão perturbador é fazer parte de todo esse contexto, seja como um funcionário público, seja como um prisioneiro.
Meu entrevistado era alguém notável na cidade. Não parecia ser do tipo que mata, mas daqueles que mandam matar. Seu caso chamou a atenção pela suposta reviravolta que a sua vida tomou em alguns anos. Como um homem aparentemente honesto e relativamente bem-sucedido simplesmente torna-se um golpista, manipulador de pessoas e negócios?
Não era o meu objetivo extrair informações sensíveis das suas palavras. Sabia que seus advogados provavelmente o orientaram para entrevistas e não permitiriam que ele vazasse qualquer dado comprometedor. Estava mesmo interessado em seus valores, em suas perspectivas pessoais, suas motivações para tomar as decisões que tomou.
Para minha surpresa, entretanto, o homem era um verdadeiro expert das palavras. Por mais que tentasse conduzir a conversa, ele retomava o controle. Seus questionamentos eram capazes de prender qualquer pessoa em horas de reflexão. Dessa forma, tentei ser o mais objetivo possível, ainda que por dentro estivesse profundamente intrigado.
- Senhor, preciso lhe dizer que muitas pessoas ficaram interessadas em entender por que um homem aparentemente generoso, educado e de boa família revelara-se um criminoso.
- Você me parece um bom rapaz. É corajoso por vir me visitar em um lugar tão desagradável apenas por uma oportunidade na carreira e talvez um pouco de curiosidade. Você é casado?
- Sim, senhor, mas isso não vem ao caso. Meu tempo é limitado e...
- Tudo bem, não se preocupe. Vamos fazer isso rápido. Só quero saber com quem estou prestes a me abrir. Pelo jeito você é um cidadão honesto, cumpre seus compromissos, procura crescer na carreira, levar uma vida tranquila com a família. Ou seja, você é do tipo que segue as regras do jogo.
- Pelo visto, o senhor não é exatamente adepto às regras.
- Como não? Você sabe. Tentei levar uma vida honesta por muito tempo, talvez por honra aos meus pais, minha esposa e filhos. Mas, sinceramente, por quê?
- O que quer dizer com isso?
- Veja bem. Pense em todas as pessoas que convive e também naquelas que cruzam seu caminho todos os dias. Você não pode afirmar que todas elas são honestas, certo?
- Senhor...
- Só estou dizendo que não é do feitio das pessoas fazer a coisa certa. Mas isso não quer dizer que seja necessariamente culpa delas. A maioria de nós, cidadãos urbanos, precisamos estudar décadas, sacrificar o dinheiro dos nossos pais, virar incontáveis noites em claro, puxar o saco de sujeitos engravatados e tolerar empregos patéticos que pouco ou nada se diferem de um regime escravo. As pessoas entregam seu tempo, seu suor e sua saúde em troca de uma vida de migalhas na qual são obrigadas a valorizar as superficialidades mais estúpidas para ao menos tentar acreditar que essa louca corrida faz algum sentido. Então, lhe pergunto mais uma vez, por quê? Por que seguir as regras? Por que seguir as regras em uma país como este, se todas essas regras apenas te jogam para baixo?
- Bem. Sem querer ofender. Mas de que vale ser um desordeiro e passar o resto da vida atrás das grades?
- Muito justo! — Risos — Esse é um risco, e, sinceramente, é um dos menores. Convenhamos que a vida é uma só. Se você tivesse a oportunidade de realmente ter uma boa rotina e beneficiar as pessoas que ama de verdade. E, por favor, não trate isso apenas como uma questão de dinheiro. Falo de ter amigos de confiança, contatos importantes, experiências interessante e, talvez, mais lealdade do que se vê em muitas famílias "amorosas". O mundo está aí para todos e as regras que você insiste em respeitar não são mais do que convenções políticas...
Naquele mesmo instante, um oficinal penitenciário surge anunciando o fim da nossa conversa. Antes de se levantar, porém, o homem me dirigiu a sua últma frase:
- Apenas pare um minuto para pensar nos idiotas que estão definindo as alegrias e tristezas da sua vida.
Agradeci e me retirei. Abandonei aquele lugar em silêncio com a certeza de que não teria minha tão sonhada manchete. O homem nada disse sobre o que meus superiores queriam que eu escrevesse, mas deixou claro o quão frágil são elos da nossa sociedade.
Quem é o homem honesto, afinal? Um nobre ou um covarde?
"Nas palavras de famosos criminologistas, quando o homem entra pela primeira vez em contato com o crime, tem-lhe horror. Se mantém-se em contato com o crime por algum tempo, acostuma-se a ele e o suporta. Se ficar muito tempo em contato com o crime, acaba abraçando-o e se torna influenciado por ele." — Napoleon Hill
Sempre me inspirei em famosos jornalistas investigativos. Era fascinado com a determinação que aquelas pessoas demonstravam pela verdade. Talvez pelo contraste que tal premissa representasse em um mundo marcado por mentiras e superficialidades.
No entanto, há sempre um abismo entre o sonho e a prática. Após anos de estudo e estágios pouco satisfatórios, lá estava eu, prestes a conseguir a minha primeira reportagem de capa, apenas alguns meses após ter sido contratado.
Quando cheguei naquele lugar, porém, meu entusiasmo começou a ceder lugar para à ansiedade. Entendi prontamente porque outros jornalistas experientes haviam deixado passar a empreitada.
Acho que todos temos alguma noção da agonia e da precariedade de um presídio, mas garanto que somente ao conhecer um local como este de perto que o indivíduo compreende o quão perturbador é fazer parte de todo esse contexto, seja como um funcionário público, seja como um prisioneiro.
Meu entrevistado era alguém notável na cidade. Não parecia ser do tipo que mata, mas daqueles que mandam matar. Seu caso chamou a atenção pela suposta reviravolta que a sua vida tomou em alguns anos. Como um homem aparentemente honesto e relativamente bem-sucedido simplesmente torna-se um golpista, manipulador de pessoas e negócios?
Não era o meu objetivo extrair informações sensíveis das suas palavras. Sabia que seus advogados provavelmente o orientaram para entrevistas e não permitiriam que ele vazasse qualquer dado comprometedor. Estava mesmo interessado em seus valores, em suas perspectivas pessoais, suas motivações para tomar as decisões que tomou.
Para minha surpresa, entretanto, o homem era um verdadeiro expert das palavras. Por mais que tentasse conduzir a conversa, ele retomava o controle. Seus questionamentos eram capazes de prender qualquer pessoa em horas de reflexão. Dessa forma, tentei ser o mais objetivo possível, ainda que por dentro estivesse profundamente intrigado.
- Senhor, preciso lhe dizer que muitas pessoas ficaram interessadas em entender por que um homem aparentemente generoso, educado e de boa família revelara-se um criminoso.
- Você me parece um bom rapaz. É corajoso por vir me visitar em um lugar tão desagradável apenas por uma oportunidade na carreira e talvez um pouco de curiosidade. Você é casado?
- Sim, senhor, mas isso não vem ao caso. Meu tempo é limitado e...
- Tudo bem, não se preocupe. Vamos fazer isso rápido. Só quero saber com quem estou prestes a me abrir. Pelo jeito você é um cidadão honesto, cumpre seus compromissos, procura crescer na carreira, levar uma vida tranquila com a família. Ou seja, você é do tipo que segue as regras do jogo.
- Pelo visto, o senhor não é exatamente adepto às regras.
- Como não? Você sabe. Tentei levar uma vida honesta por muito tempo, talvez por honra aos meus pais, minha esposa e filhos. Mas, sinceramente, por quê?
- O que quer dizer com isso?
- Veja bem. Pense em todas as pessoas que convive e também naquelas que cruzam seu caminho todos os dias. Você não pode afirmar que todas elas são honestas, certo?
- Senhor...
- Só estou dizendo que não é do feitio das pessoas fazer a coisa certa. Mas isso não quer dizer que seja necessariamente culpa delas. A maioria de nós, cidadãos urbanos, precisamos estudar décadas, sacrificar o dinheiro dos nossos pais, virar incontáveis noites em claro, puxar o saco de sujeitos engravatados e tolerar empregos patéticos que pouco ou nada se diferem de um regime escravo. As pessoas entregam seu tempo, seu suor e sua saúde em troca de uma vida de migalhas na qual são obrigadas a valorizar as superficialidades mais estúpidas para ao menos tentar acreditar que essa louca corrida faz algum sentido. Então, lhe pergunto mais uma vez, por quê? Por que seguir as regras? Por que seguir as regras em uma país como este, se todas essas regras apenas te jogam para baixo?
- Bem. Sem querer ofender. Mas de que vale ser um desordeiro e passar o resto da vida atrás das grades?
- Muito justo! — Risos — Esse é um risco, e, sinceramente, é um dos menores. Convenhamos que a vida é uma só. Se você tivesse a oportunidade de realmente ter uma boa rotina e beneficiar as pessoas que ama de verdade. E, por favor, não trate isso apenas como uma questão de dinheiro. Falo de ter amigos de confiança, contatos importantes, experiências interessante e, talvez, mais lealdade do que se vê em muitas famílias "amorosas". O mundo está aí para todos e as regras que você insiste em respeitar não são mais do que convenções políticas...
Naquele mesmo instante, um oficinal penitenciário surge anunciando o fim da nossa conversa. Antes de se levantar, porém, o homem me dirigiu a sua últma frase:
- Apenas pare um minuto para pensar nos idiotas que estão definindo as alegrias e tristezas da sua vida.
Agradeci e me retirei. Abandonei aquele lugar em silêncio com a certeza de que não teria minha tão sonhada manchete. O homem nada disse sobre o que meus superiores queriam que eu escrevesse, mas deixou claro o quão frágil são elos da nossa sociedade.
Quem é o homem honesto, afinal? Um nobre ou um covarde?