O ÔNIBUS ERRADO

Eu julgava conhecer bem a geografia cidade de São Bento, localidade que resido desde criança, contudo, não poderia estar mais enganado. Existem mistérios que pairam por cada esquina e que suscitam pesadelos aos que tolamente ousam investigar tais ocorrências sobrenaturais. Por baixo da aparente superfície industrial de médio porte e seu centro vibrante de comerciantes e moradores de rua, residem enigmas escabrosos, lendas antigas que permeiam o tempo. Histórias sobre fantasmas e discos voadores e outras ocorrências sobrenaturais e insólitas. Contudo, não acreditava que eu mesmo um dia seria o protagonista de eventos inexplicáveis.

Meu infortúnio teve início em uma manhã chuvosa, na qual retornava para casa de meu trabalho. Leciono História em um colégio particular em Cascata Branca, um antigo distrito de São Bento, emancipado na década de oitenta, e especificamente nesse dia frio do começo de junho, tinha apenas as duas primeiras aulas. Tudo transcorria como rotineiramente deveria ser, e após as duas únicas aulas, segui para a casa. Na ocasião não possuía ainda carro, e não existiam aplicativos de transporte privados e por isso fazia uso frequente do deficitário transporte público municipal. Subi a longa ladeira entre a escola e a avenida onde eu cotidianamente esperava pelo Ônibus para retornar para meu lar.

Lembro-me que estava cansado, molhado, com frio e acometido por uma continua, mas suportável, dentro do possível, dor de ouvido. Tudo o que mais desejava era chegar logo em casa, tomar um analgésico e descansar. Por isso me alegrei quando vi um ônibus surgir de uma curva distante e vir em minha direção. Não me importava muito sobre qual ônibus seria, já que todos convergem para o terminal urbano e de lá eu pegaria outro para minha casa, um contratempo ao qual estava já terrivelmente acostumado.

Ao entrar, contudo, naquele circular em especifico, me surpreendi com o fato de o mesmo ser de um modelo velho, o qual já fazia anos não via em circulação na cidade, mas não dei importância, tudo o que queria era poder trocar de roupa e me aquecer de baixo de cobertas, esperando melhorar do resfriado e aproveitando o único dia da semana que tinha essa regalia de poder sair mais cedo do trabalho. Sentei-me em um acento individual e me distrai lendo um livro, e por estar entretido com as páginas do romance, demorei perceber que o caminho inusitado que estava tomando. Foi quando olhei pela janela e me sobressaltei com as ruas pelas quais seguia...

Como mencionei no começo desse relato, conheço São Bento, moro nesta cidade já fazia mais de vinte anos, mas aquelas vias eram para mim completamente desconhecidas. Uma série de casas e prédios com uma arquitetura “antiga” e decadente. O estranho era que apesar de não reconhecer nada a minha volta, mesmo assim a passagem guardava em si uma estranha familiaridade a qual eu não conseguia identificar. Era como se fosse uma versão bizarra e alternativa da cidade. Uma das características, que mais me chamou a atenção, foi um longo rio canalizado, margeado por duas amplas avenidas, uma formação urbana que nunca vira igual em duas décadas como morador de Sorocaba.

Nesse momento, dois fatores afetaram profundamente meu estado de espirito. Primeiro, me dei conta de que era o único passageiro abordo. No começo não estranhei o fato, já que o ponto em que pego o ônibus é um dos primeiros daquele trajeto, mas em nenhum momento da viagem outra pessoa entrou. O outro fator era ainda mais estranho, pois reparei que não via absolutamente ninguém nas ruas daquele lugar escabroso. Havia carros ali, parados e em transito, mas nenhum transeunte, a não ser, por um sujeito agachado as margens do rio em meio a chuva, procurando com as mãos algo em seu leito. Uma figura estranha, cuja a silhueta se assemelhava mais com a de um anfíbio do que a de um ser humano. Nesse ponto já todo o tipo de teorias extravagantes tomavam conta de minha mente e qualquer explicação racional parecia desprovida de sentido.

Saindo dessa marginal, o ônibus seguiu por uma estrada, ladeado por morros repletos de vegetação e por fim chegou a um bairro que só posso chamar de surreal. Parecia mais um vilarejo abandonado, com ruas estreitas calçadas de paralelepípedos e casas velhas, erguidas no começo do século XX. Eram casebres decrépitos, delapidados pelo tempo e pelo abandono. Todas as venezianas de madeiras estavam fechadas, parecendo que não eram sequer abertas já faziam décadas. O ônibus parou em seu ponto final, uma praça tomada por mato alto e na qual havia uma sinistra igreja em ruínas se erguia no alto de uma colina... Ali também não havia ninguém nas ruas, apenas o vazio e o abandono além da chuva e do frio e uma sensação opressiva de estar sendo vigiado por olhos ocultos nas sombras dos casebres talvez não inteiramente abandonados. Não sei por quanto tempo permaneci ali, temendo descer do veículo, desejando jamais ter visto aquele blasfemo bairro onde o abandono e fantasma aterradores pareciam guardar segredos inomináveis. Enfim o motorista olhou para mim do retrovisor, seu rosto era estranho, quase como uma mascara emborrachada e os olhos ocultos por óculos escuros. Com uma voz rouca e ríspida disse-me:

— Você não deveria estar aqui. Pegou o ônibus errado... – Me escolhia no acento temendo por qualquer revelação devastadora. Ao que o mesmo sorriu, com uma boca que parecia conter mais dentes do que seria normal para uma pessoa e, prosseguiu. – Fique tranquilo, te levo de volta...

E refizemos o mesmo peculiar trajeto, com aquelas tortuosas vielas e vias esquisitas e desprovidas de vida. Eu estava ainda temeroso por meu destino, contudo acabei por em algum momento por cochilar e quando despertei o circular já estava se aproximando do ponto de onde parti para essa singular viagem. Desci do famigerado ônibus, e aguardei pelo próximo... Esse sim, “normal”. Era como se tivesse retornado ao meu mundo, havia uma sutil diferença ao meu redor. Tentei claro racionalizar depois o que ocorreu, “provavelmente era apenas um lado rural que eu nunca vira antes”... Mesmo assim, creio que nunca saberei quais foram os estranhos bairros pelos quais percorri naquela manha fria e úmida de junho.