Voos e vaqueiras
Eu seguia em direção ao trabalho. Meu trabalho. O ofício específico não importa. Caminhava. À meio caminho um colega de carro me oferece uma carona. Colega. Não gosto dessa palavra. Éramos peões. Peões não tem colegas. Os frescos do RH sim. Os frescos da TI também. Peões tem outros peões. Beiço, sem-sangue, Seu Isso, Seu Aquilo, negão, alemão, índio, fiapo, deixa-que-eu-chuto, etc. O carro dele era pequeninho, como uma caixa de sapato descolorida e amassada. Ele também era. Pequeninho. Feinho. Mas o som... A máquina tinha um baita som. Ele era a cara do Tom Waits, mas a voz não era sexy. Nem as canções que cuspia sua máquina tão bem arranjadas. Ele, meu ''colega'', dirigia com os olhos não na estrada, mas nas caras dos passantes, a lhes observar as expressões, como se lhes dissesse, Som que nem esse vocês nunca ouviram antes, né meu brother? Ele me contava lorotas e eu fingia que acreditava. Tinha uma vizinha gostosa que, segundo ele, tinha comido na noite anterior. Eu perguntei se era sarada. Ele disse, com certa impaciência: não, não, sarada não, GOSTOSA, GOSTOSA! Enfim, comeram-se um ao outro, segundo ele, transaram, fizeram amor, fornicaram, montaram a besta de duas costas, deram-se o abraço genital, deitaram no linguajar bíblico, de pé, à mesa, no chuveiro, cowgirl invertida, meia-nove, fizeram de tudo. Ele tinha uma mulher, que não a gostosa, a quem achava que estava grávida, mas a esta parte eu já não lhe dava mais ouvidos. Depois do voo da garça tudo o mais perdeu a graça. Ao portão do complexo industrial, o porteiro nos informou de que não havia trabalho naquele dia. DAY OFF. Outra expressão que não me desce. Porque não DIA DE FOLGA? DAY OFF o caralho. Ainda somos sul-americanos, não somos? Porque não día de descanso? Día libre? Já que estamos prostituindo a nossa língua, que a metamos nas nossas vizinhas latinas. Tom Waits, do meu lado, era a própria capa de Blue Valentine. Por alguma razão não fomos avisados. Esqueceram de nós. O porteiro nos olhava com uma comiseração sincera, e eu lembrei de outro porteiro, o da escola primária. À época, com quatorze anos, compareci à escola para o ensaio da formatura. O porteiro, logo à entrada, me informa que a formatura se dera na semana anterior. Eu a perdi. Me formei, no entanto, esse negócio de capelo e diploma é mito. Com esse conhecimento, evitei a formatura do ensino médio também. Eu não tinha mais medo. Meu colega peão já estava no carro. Ele reclamava do gasto com a gasolina e da falta de consideração dos que não o avisaram da folga. Eu lhe ouvia os berreiros. Pensava que do meu lado eu ao menos não desperdiçara nada, exceto o meu tempo e a sola dos meus sapatos que, se pararmos para pensar, é a mesma coisa. Ele, do seu lado, tinha uma mulher e uma gostosa a quem voltar. Voos e vaqueiras. Ainda que fossem apenas fantasias, eu o invejava pela imaginação. Deixado à uma esquina, Tom a seguir os seus blues, segui para minha casa. DAY OFF, afinal de contas. Minha casa. O lugar específico não importa. Caminhava. À meio caminho uma ninfa me joga um sorriso cheio de promessas. Ninfa. Não gosto dessa palavra. Muito intelectual. Fresca. Éramos amantes. Ela amava o dinheiro. Eu amava um belo corpo. Beiçuda, sanguínea, Seu Gostoso, Sua Gostosa, tesão, amorzão, lindo, gato, deixa-que-eu-chupo, etc. No dia seguinte eu teria estórias para contar também, ainda que fossem apenas fantasias.
Para Rubem Fonseca