Caos e silêncio

... embrac'd as it were from the ends of opposed winds.

William Shakespeare

If the world should break in two...

Trent Reznor

Aleskaya, como uma gárgula, as pernas a balouçar sob a cornija, as meias puídas de náilon cor-de-rosa estofadas dentro de um par de all star pretos, as canelas brancas de fora, mirava um arranha-céu gêmeo, oposto ao seu, a muitos quilômetros de distância, onde estava Deviir, seu amigo, com quem mantinha extensa entrevista.

Ela falava de caos, ele de coisas cabais. Ela falava do grande incêndio de Londres de mil seiscentos e sessenta e seis, ele das mônadas. Ela do genocídio no Timor Leste, ele de Évariste Galois. O falar de Aleskaya era repleto de superlativos, hipérboles e adjetivos; o de Deviir era casto, frio e preciso. A ela agradava Hakim Bey, a ele Wittgenstein. Ela se debruçava sobre Lúcia McCartney, ele sobre Herbert Quain. Aleskaya costumava interrompê-lo, tomar-lhe a frente e a palavra. Deviir, por vezes, abusava dos didatismos. A distância, por sua própria natureza, tornava frios os sentimentos que se seguem às contendas, e acalentava o que guardavam de zelo um pelo outro.

Deviir, a pele escura de um filho de Ganges, um descendente último de Bhaskara I, lia na linguagem das relações um desacordo entre as partes constituintes do mundo. Sabia ser o desacordo que via entre as partes uma evidência de sua condição também de parte, de membro. O universo é muito bem acordado, ele o sabia bem.

Ele pensava no número zero, na sua forma de ovo, que simboliza o nascimento, o começo; pensava no determinismo, no primeiro instante do universo; que zero é o número do Tolo das cartas de tarô; na anedota em que Heráclito joga dados com as crianças; no Tolo, no inocente brincalhão sempre a orlar as coisas certas; em Aleskaya, que ''pensa como uma criança, fala como uma criança''... e pensava que não devia pensar nestas coisas tão incertas, jogos e anedotas, porque estas coisas não lhe cabiam.

Aleskaya coçava a parte interna do pulso esquerdo, o braço com o qual escrevia, vassalo de seu cérebro direito, artístico, inconstante, inimitável. A região estava toda arranhada, sujeita a uma eterna cicatrização. Ela se sentia prestes a rebentar, sabia-se masoquista e sentia certo orgulho de sê-lo, a parte de que não se orgulhava tinha a ver com as constantes angústias. O universo é o espelho da alma, escreveu Aleister Crowley, isto ela temia que fosse verdade, seja porque a conflagração do universo fosse a sua, seja porque a sua conflagração fosse a dele.

Ela pensava no seu complexo de Noé e no seu complexo de Jeová, sentia-se como Shiva do poema, ''sua última presa será o selvagem cisne branco da beleza das coisas. E então ela ficará sozinha, pura destruição, conquistada e suprema...''* Sentia que todos os seres, todas as pessoas partilhavam dos mesmos vícios e das mesmas virtudes, em graus diferentes: havia um ateu no teísta e um teísta no ateu, inocência no criminoso e crime no inocente, um caçador na presa e uma presa no caçador, e nisto tudo ela não enxergava o caos, palavra ruim, termo predileto de seus detratores e amigos, dos ascetas e das máquinas.

Aleskaya e Deviir tinham treze e quatorze anos, respectivamente. A menina foi concebida em uma lanchonete, por dois desabrigados sem um lar que passavam lá as noites. O menino, de família abastada, teve como companhia nos primeiros anos de vida uma cuidadora muda e um cão eletrônico. Um polonês, nos primeiros anos do século vinte, escrevera que a sociedade, apesar da educação limitante, produzia gênios, e que, no futuro, apesar de uma renovação revolucionária, idiotas despontariam lá e aqui, mesmo apesar dela. Aleskaya e Deviir eram estas exceções do sistema.

Alienados da corrente do social, viviam a contrapor mundos opostos, o determinismo científico, baseado em leis, e o indeterminismo da arte, regido pelo genius de cada um, que é meramente o ponto individual por onde os rios da casualidade correm uma única vez. Aleskaya fantasiava a si própria contemplando uma grande explosão atômica, e lá, a venerar a grande coluna em forma de cogumelo, temia ficar só no mundo. Deviir podia senti-la do outro lado, mirando as vidas levemente esfumaçadas lá embaixo, a ignorar a transmigração, e lembrava que o suicídio é contagioso, e que o contágio é sempre maior em tempos insalubres. Os gênios nos deram as grandes obras, e por um tempo nos distraíram, mas não nos salvaram, isto pensava Aleskaya, antes de saltar diante de um Deviir estoico que já lhe antevera o ato.

* Tradução livre de Shiva de Robinson Jeffers: the prey she will take last is the wild white swan of the beauty of things. Then she will be alone, pure destruction, achieved and supreme