182 - Quarentena
Uma casa é sempre pequena para as pessoas que se vêem a toda a hora. Nela não há para onde fugir. Sinto-me numa ilha. O quarto não é só meu, o tempo em que posso ficar só é sempre breve. Na varanda está a velha a tomar sol, na cozinha a Luísa aos gritos com quem apareça, na sala os rapazes assistem à telescola. Quem dera poder ficar invisível a ver, da janela da sala, a rua! - Fecha a janela, olha a corrente de ar! Era ela, ubíqua como uma carraça, sempre atenta, crítica, a voz da razão, dizia. E agora ele lia, livros lidos, jornais antigos, cartas que se esquecera de rasgar. Nelas a Luísa era meiga, magra, doce e ele jovem também, militar ainda, cheio de sonhos e de palavras românticas. Quando foi que amadurecemos? Onde começámos a ver o outro como o lado azedo da vida? Daqui a nada ela chama e ninguém vai para a mesa. Depois grita mas já todos nos acostumámos com a voz dela estridente e vou aparecer eu para evitar a raiva especial. – Vou chamar a tua mãe. Cada vez está mais surda embora, para os precisos, não esteja. Por mim ela seria a melhor mãe do mundo se o mundo fosses só tu.