O QUE BEBEL BEBEU

Naqueles dias de angústia Bebel passou a beber mais que o habitual, pelo menos teve-se a impressão. Repetia que o vírus não resistia à exposição ao álcool. Por isso decidiu encharcar o tórax.

Não avaliava o efeito da ressaca, apenas se danou a beber.

Bebeu cerveja escura enquanto dedilhava as cordas do violão, o que fazia tão bem, tirando suaves acordes, mesmo embriagado. As dissonantes, os cromatismos delineados, as oitavas de sol.

O violão gemeu em dó maior. Mas nem tudo estava coordenado.

Um Dostoievsky jogado pelo chão, um Joyce deixado na calçada, folhas arrancadas de Kafka: ah, para o inferno os clássicos, resmungava.

Ficou a matutar de mão no queixo feito o Pensador de Rodin. A filosofia tinha definhado Glauber Rocha, havia abocanhado Nelson Rodrigues, desapontado João Ubaldo.

Considerava que ela havia também atordoado Aristóteles e fisgara em suas teias Nietzsche e Sartre.

Nunca tinha bebido tanto antes de filosofar uma filosofia sinistra, alienada, recheada de sentimentos ultra-existenciais, de devaneios pós-ressaca.

Na ressaca há um gosto insano de morte filosófica, e a morte filosófica não é a morte biológica: é a morte cotidiana, uma morte em vida.

Doeu a cabeça, enquanto os pensamentos pulavam e iam cair nas brenhas das caatingas, no cerne da república velha, com suas mazelas.

Guerra do homem com o homem - Onze cabeças cortadas, onze cangaceiros fora de combate. Onze homens param de disparar balas que assassinam e fazem o pensamento não fluir com sensatez. Homens que semeavam desordem em nome da ordem e tentavam se vingar da miséria que se estendia pelos séculos no sertão. Miséria que eles viam implantada por alguém. As cabeças expostas na praça não era nenhum ineditismo. Elas vinham sendo decepadas há décadas, só não se as separavam do pescoço nem expunha nas praças. Havia muito tempo que o sertanejo estava acéfalo.

Já tomado pelo efeito da cerveja e alternadas doses de rum, Bebel divertia-se com a música lúgubre: Asa Branca, Guantanamera, Canción por la Unidad de America Latina. Chorava com o Bolero de Ravel, com os mantras tibetanos. A lágrima vai encher o vale do Velho Chico e se perder pelas escavações no sertão. Vai virar voçoroca, barro puro para esculpir uma criatura à imagem divina: um deus mal feito à forma vitruviana, desfeito à ganância do Homo-Capitalis.

Mais uma dose de rum. O zunido das cordas do violão atirado com raiva a certa distância, aí debruçou sobre o espaldar da janela. Seu olhar embaçado pelo início da ressaca não divisou nada ao longe. _ O homem que constrói sofisticadas baterias bélicas, bombas de hidrogênio, modernos mísseis capazes de dar voltas na Terra, para exterminar seres humanos, não é capaz de destruir minúsculos vírus, seres que com sua invisibilidade vão dominando o mundo.

Deu um violento chute nas garrafas já vazias, enquanto curtia a ressaca etílica e mental e a angústia pelo cerco do vírus.

_Não há vazio no deserto. Há um apavorante alarido na urbe.

Joel de Sá
Enviado por Joel de Sá em 23/04/2020
Reeditado em 23/04/2020
Código do texto: T6926277
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