Segredos e coincidências

Ana e eu, amantes como éramos, combinamos de realizar uma sessão privada de cinema. Uma única regra: nenhum produto de Hollywood. Uma única exceção: David Lynch. Tínhamos um amigo em comum. Ele baixava todo o tipo de material da internet, a ele fizemos o pedido de quinze obras cinematográficas. Ana compôs a lista dos quinze. Eu estava incumbido de ter com nosso amigo e apanhar os filmes, cada obra num DVD único para que se conservasse toda a qualidade dos arquivos. Dois dias depois, findo o prazo que ele nos dera, fui até sua casa.

Lá, conferi os DVDs selados e devidamente nomeados com a lista de Ana. À saída, o nosso nobre fornecedor resolveu me mostrar uns achados do obscuro mundo da internet. Eu não partilhava de sua curiosidade mórbida, nem de seu estômago, portanto, depois de não mais poder acompanhá-lo, perguntei onde ficava o banheiro. Levei os DVDs comigo. Sentei-me ao vaso sem pretender usá-lo. Esperava eu que, ao tempo de retornar, o vídeo a que ele assistia houvesse terminado.

A esse tempo, alguém, ao que parece, fez-lhe uma visita. Não querendo lhes ouvir as conversas, pus-me a verificar os DVDs em minhas mãos, as escolhas de Ana. De todos, Sombre era o que mais me agradava. Seria bom revê-lo. Eu pensava na beleza tétrica de Elina Löwensohn quando de repente a porta do banheiro se abriu. Com o susto e com o berro surdo de quem a abrira, deixei cair os DVDs no piso. Sentindo-me meio constrangido, embora plenamente vestido, recolhi rapidamente os discos do chão e voltei para a sala, onde nosso querido fornecedor se punha a rir de sua visitante embaraçada e de mim. Com pressa, despedi-me, desculpei-me e me fui embora.

Em casa, deixei os DVDs sobre a mesa e logo me pus diante da geladeira, a deliberar sobre sanduíches e acompanhamentos. À tardinha, Ana, que voltava da casa dos pais, após os beijos verdes dos primeiros anos, foi conferir o nosso material fílmico, compilado através de vários terminais mundo afora. Amor, não eram quinze filmes, ela me perguntou. Eu confirmei que sim. Ela disse que eu trouxera apenas quatorze discos, e tinha razão. De acordo com a sua lista, faltava-nos exatamente Los Olvidados* de Luis Buñuel.

(De todas as coisas que me metem os medos, as pequenas coincidências são as piores, pois o vídeo terrível a que eu não pudera assistir, tinha como personagens esses com quem dividimos por vezes os pesadelos, e que tão logo destes despertamos, pomo-nos imperativos a esquecê-los.)

Ana e eu, no primeiro momento, rimos os dois, depois nos veio um calafrio. Recebemos uma ligação de nosso amigo em comum. Tomei educamente o celular das mãos de Ana, eu não queria que ela lhe falasse. Ele me informou sobre o tal disco que eu deixara por lá. Eu lhe disse que ficasse com o DVD, e que não gostávamos mesmo de Buñuel.

Nunca contei a Ana sobre o vídeo.

* Os Esquecidos.