A biblioteca dos despojos

Tobias Finke, sentado à sua escrivaninha, as quinas descascadas, o tampo coberto de dedos, aguardava as palavras. O quarto, o seu quarto, era enfartado de livros, livros ruins, livros bons, papéis em branco, papéis manuscritos, móveis imóveis sobre móveis, mas nada se movia ali exceto o pó e ele, Tobias, escritor, pequeno, habitante do sopé da Montanha Mágica.

Duas batidas soam da porta. Carl Riegel, seu amigo, trazia-lhe um livro, outro, mais um, e um sorriso largo que à saída sempre levava consigo. Ele pousou a carga sobre a escrivaninha, olhou Finke nos olhos e disse:

- Eis o meio de fazer correr as horas!

- Passatempo. Porque a perífrase?

- Por que a beleza? ''Olhai para os lírios do campo... não trabalham nem fiam...''

- O que me trouxe?

Era um romance. Fora lançado há dois anos. Romance policial. Riegel era um intelectual de mau gosto. Vadio, não escrevia o que pensava, um Gógol desperdiçado.

- ''Disseram o que tinham de dizer um ao outro. - Finke lia um trecho do livro - Passaram-se alguns segundos e a porta lateral se abriu, entrando o...'' Por que escrever: - ''passaram-se alguns segundos''?

- O que está querendo dizer? - perguntava Riegel, que acendia um cigarro, acomodando-se sobre duas colunas de livros pesados.

- Há certas coisas implícitas na maneira como se escreve. Bastaria a ele, o escritor, começar uma nova linha e dizer: - ''A porta lateral se abriu, entrando o...'' Não havia necessidade de escrever: - ''passaram-se alguns segundos''.

- Por que simplesmente não se deixa levar pelo espectro emocional do romance? O memento mori vulgar que tanto amamos.

- A sétima arte não fez bem aos escritores. ''Isso fez com que uma expressão pensativa surgisse em meu rosto.'' Quem há cinquenta anos escreveria assim?

- Como você escreveria?

- ''Tornei-me pensativo''. Hoje se cria o personagem com o close-up e o contra-plongée na cabeça.

- As partes com sexo são bem explícitas.

- George Orwell achava que as descrições explícitas de sexo em sua época iriam acabar, eventualmente. Como estava enganado. Ele não gostava, achava vulgar, como a morte da pequena Nell.

- Ele não gostava do que? De sexo?

- Das descrições explícitas de sexo.

- Eric Blair não viveu o bastante para ler Kindness of Women. Teria sofrido um derrame. Os personagens, dá para lhes sentir a umidade da pele.

Finke achou um lugar para o romance policial que Riegel lhe trouxera. Não pode ir muito além nas leituras. O autor não conseguia expressar uma metáfora sequer sem introduzi-la com um: - ''como se''. Cacoete que lhe era imperdoável.

Ele escrevera cinco livros, nenhum fora publicado, confundidos que estavam uns nos outros lhe era impraticável reuni-los devidamente. Vez ou outra Riegel encontrava uma página sua e lia em voz alta as palavras perdidas, Um homem com pedras nas mãos me quer vendê-las, é o muro, é o muro, ele repete, o vento que sopra do leste ainda é frio e triste, ele continua, mas o capitalismo chegou, as pedras não me servem, meu rapaz, sou operário, tu és um intelectual, guardará na estante todo esse pó e o exibirá aos teus amigos depois do jantar, depois das panças cheias, um pouco de história, a doce história, eu também sou histórico mas não caibo numa estante...

Amanhã, quem sabe, Carl Riegel lhe traria outro livro. Tobias Finke se sentia sufocado. Imaginava-se morto, papéis velhos lhe saindo da boca, metidos nas roupas, amassados entre os dedos. Aguardava ainda as palavras, mas na companhia de Riegel elas nunca lhe vinham ao encontro. Riegel era um entorpecente. Finke tinha quase quarenta anos, cinco livros não publicados, e uma escrivaninha velha com as gavetas cheias de pedras. As pedras do muro, o homem lhe dissera. Vendeu-me um pedaço da história: é isto uma sinédoque? Pode-se dividir a história? Com as mãos guardadas dentro da gaveta, sobre as pedras caras de uma casa de viela qualquer, ele achava que sim.

- Carl, porque não escreve?

- Escrever o que? - perguntou ele distraído, os olhos em Manon Lescaut entre os dedos brancos.

- As ideias.

- Olhe em torno de si, Tobias, olhe em torno de si.