Grotesco
“A partir de um certo ponto, não há retorno. Este é o ponto que é preciso alcançar”.
Franz Kafka
O prazer é um peso? Certamente não, mas a obrigação é um fardo. Eu estava me sentindo pesado com a mochila repleta de rascunhos, manuscritos que escrevo no horário do almoço. Todo dia escrevo em sacolas de pão, papel de cigarro ou jornal velho de sarjeta. Quando chego em casa tento transformar toda esta pobreza em arte. Eu tenho um computador em casa. Só me falta talento.
Com o pensamento completamente ocupado por essas coisas de arte e o corpo todo premido numa guarita de estacionamento no centro da cidade eu não tinha muito tempo de observar e viver a realidade - que é o lugar de onde vem a vida e para onde vai a arte. Eu estava quase cego. Até que um dia eu vi. E cheguei mais perto para ver:
A saliva escorria pelo canto direito da boca e caía no assoalho próximo ao chinelo encardido. Havia se formado uma poça da substância amarelada no pavimento. O velho estava duro e encurvado como se estivesse caindo em direção ao solo. Olhei ao redor e vi que ninguém tinha notado a situação do homem, pois estavam todos muito apressados ou distraídos e entravam ou saíam dos ônibus indiferentes. Tomado por uma preocupação provinciana me aproximei do velho, pus a mochila no chão e sacudi os seus ombros.
-Senhor, senhor! Está passando mal?
Ainda o segurava quando o corpo do velho tremeu bruscamente como se estivesse esticando e se desprendendo de uma cola cujo recipiente era eu. Retirei a mão e ele permaneceu de lado. Olhou para o alto me encarando. Vi no fundo dos seus olhos negros, pequenos e enrugados – como se visse numa gigantesca paisagem – um brilho de cólera. Todo o rosto dele se avermelhava como a borda de um vulcão que estivesse prestes a se derramar. Num movimento rápido baixou os olhos, endireitou o corpo e com um som impronunciável engoliu o fiapo de baba que recomeçara a descer. Disse entredentes:
-Vê aí o que você fez!
Mudou de assento enquanto falou. Sentou-se de costas para mim e deixando cair o braço ao longo do corpo, apontou para a poça de cuspe no piso. Acompanhei o braço esquálido e comprido do ombro até as pontas amareladas dos dedos. A mão idosa parecia uma seta indicando o caminho por onde andava sua mente. Da unha suja do indicador até a gosma no soalho media um palmo talvez; da gosma até uma formiga preta que se distanciava reticente, media alguns centímetros. Mirei o rosto do velho. Encarei a sua frágil figura. Ele não olhava mais para mim. Estava de cabeça baixa, declinada, desta vez para o lado esquerdo. O fiapo de baba, como uma teia de aranha, descia lentamente do canto da boca.
Balancei minha cabeça, cerrei os dentes e senti nojo. Olhei ao redor para o mar de apatia da rodoviária e sorri da minha inocência. Foi o último sorriso da manhã, pois ao olhar para os meus próprios pés, minha mochila - com três meses inteiros de trabalho - não estava mais ali.
Fiquei louco e levantei a mão para dar na cabeça dele. Instantaneamente me pareceu que as pessoas, indiferentes até aquele momento, se voltavam para nós. Abaixei o braço e procurei o rosto safado dele. O velho continuava babando como se nada houvesse acontecido. Gritei na cara dele um tremendo xingamento. Ele se fez de surdo por um instante e depois balbuciou com uma vozinha simulando gagueira:
-Vv-vai cha-cha-mar a po-po-lícia?
Abaixei-me de cócoras à altura do rosto dele. Todo o meu corpo tremia em contraste com o corpo petrificado do velho. Passei a olhar e medir toda a sua figura, das havaianas encardidas ao boné descorado. Concluí que não valia a pena. O homem era um trapo. Do rosto ao resto do corpo nada nele prestava. Levantei-me devagar e profetizei para ele:
-Não, não vai adiantar.
Ele arriscou um olhar para mim e um caldo de cuspe caiu na camisa xadrez. Abaixou os olhos, limpou o cuspe com o antebraço e retirou do bolso frontal da camisa uma caixa de fósforo. Abriu-a com dedos resolutos e puxou lá de dentro uma grande formiga marrom-avermelhada. Jogou-a no piso da rodoviária. Guardou cuidadosamente a caixinha e tentava limitar com os pés o movimento aleatório da formiga. Não me olhou enquanto falava com um dos cantos da boca:
-Qui cê vai fazê, intão?
Levantei-me estalando todas as juntas dos joelhos. Respirei fundo, peguei a carteira de cigarro e o isqueiro do bolso da calça e acendi um, ignorando a placa de proibido. Dei uma longa tragada e soprei a fumaça na cara do velho. Ele piscou os olhos, tentando se livrar da nuvem. Antes que ele pudesse se esquivar enfiei a mão no bolso de sua camisa xadrez e retirei a caixa de fósforos. Abri-a e esparramei as formigas em todas as direções. O velho ainda tentou se levantar, mas minha mão forte o manteve sentado. Tentou xingar, porém gorgolejou e se engasgou na própria saliva.
Ficamos assim: nos encarando furiosamente e, ao mesmo tempo, nos reconhecendo. Por mim as formigas seriam livres, se escapassem dos pés dos passantes. Já os meus rascunhos literários - a esta hora – devem estar circulando nas costas de algum pivete. Deixei o velho babando e me dirigi à plataforma. Eu estava com ódio, mas estava leve. Era como se aqueles simples papéis rabiscados pesassem cem anos. Entrei no ônibus, fechei os olhos e cochilei de pé.
Dois ônibus depois eu estava em casa. Abri a porta da quitinete e o vapor quente do dia se derramou sobre mim. Cinco minutos depois me sentei no sofá com o note no colo. Tinha muito o que escrever. Relembrar, imaginar e escrever. Antes, no entanto, fui até a janela, escancarei-a e abri minha lata de cerveja. Dei vários e longos goles. Depois me lembrei do homem babando e arremessei a lata no pátio. Voltei para o word e comecei a escrever. Era como se já soubesse o que fazer com as palavras, sem precisar pensar. Três páginas depois tive vontade de cuspir.
Corri pra janela e cuspi alto e longe. De repente, me passou pela cabeça que aquele velho a essa hora já devia estar dormindo e economizando saliva. E os meus papéis? Nesse exato momento, algum adolescente infrator já deve estar enrolando um baseado com eles, ou limpando a bunda, quem sabe? Eu sei apenas que as formigas estão livres em algum lugar lá fora.