Uma exposição, um número errado e um conselho

1

O diletante e um douto

O que você faz, Eu caço, O que você caça, patos, Caço narcisistas, Profissão perigosa, Não, bem, depende, afinal se trata do animal mais perigoso do mundo.

Conhece Alfred Korzybski? Não? Não há problema, ele já morreu. Wilhelm Reich também. Esses dois homens tinham muito em comum. Presenciaram as duas grandes guerras. O primeiro acreditava que o problema do homem estava na sua linguagem; por isso, dizia ele, em outros termos, é claro, vivíamos as maravilhas da tecnologia, enquanto nossa ética não era superior às dos homens das cavernas. Não é a fé que explica a grandiosidade da obra de Bach, mas a matemática. Ela nos permite a música, os monumentos, o laser, as viagens espaciais. Onde nos leva a nossa ética? Não mais longe que a ponta de nossos narizes. Há matemática na natureza e em nossos cérebros, mas nenhuma em nossa linguagem da qual os poetas platônicos tanto se orgulhavam. Em resumo, para o polonês, o problema estava na linguagem.

O segundo acreditava que o problema do homem era de caráter psicofisiológico. Punha enorme importância no processo do orgasmo. Na liberdade e no prazer que o ego encontra no verdadeiro orgasmo, que não é meramente ejaculativo. Entendia que grande parte das doenças, físicas, o câncer em especial, e mentais, drogas, alcoolismo, depressão, psicopatia, eram todas configuradas a partir dessa impotência orgástica que, por sua vez, estava ligada a tantas outras amarras psicológicas relacionadas ao caráter, à religião castradora e ao moralismo hipócrita, senhor das casas de tolerância e das perversões sexuais de todas as classes sociais. Para o austríaco, todo o ambiente social precisava de uma reforma, porque estava doente e concebia pessoas doentes. Em resumo, o problema era físico, e filosofia, política, ou moralismo algum o resolveria.

Eu sou um homem que acredita num terceiro grande problema. E, de minha parte, acredito ser ele a causa dos outros dois. A causa também de nunca termos aprendido na escola sobre o Estrutural Diferencial e o Orgônio azul. Seria interessante mencionar Wilhelm Stekel. Num livro seu, Padrões de Infantilismo Psicossexual, publicado pela primeira vez em 1952, há ao final um texto, colocado quase à parte, como um post scriptum, fazendo às vezes de uma advertência, em que ele fala sobre uma questão bastante importante e digna de nota: o narcisismo.

A primeira coisa que vem à mente das pessoas, quando se fala em narcisismo, é um alguém vaidoso a se mirar no espelho. Isto se dá devido ao mito, devido à pintura de Caravaggio. Pensa-se num homem belo e bem vestido, numa mulher arrogante de cabelos longos. Ignora-se assim todos os que não tem brilho. Procure sobre o tema na internet, lá encontrará sempre as mesmas características: ilusões de grandeza, vaidade excessiva, necessidade de atenção, indiferença para com os outros, alguém que ama a si mesmo... Descarte logo a última: ‘’ alguém que ama a si mesmo’’, não, ele não ama a si mesmo. Leia Kathy Krajco. Ele despreza a si mesmo, e é por isso que cria uma imagem grandiosa de si na qual passa a acreditar. Pela mesma razão, qualquer pequeno detalhe que se ponha em seu caminho, criando-lhe dificuldades, causa-lhe enorme sofrimento interno: vê a si mesmo como um deus, e que deus não tem o controle do universo? No entanto, é claro, tudo isso é muito vago, a melhor maneira de conhecer um narcisista é conviver com um. Eu mesmo não posso afirmar se alguém o é ou não somente de olhar, ou mesmo durante uma ou duas conversas. Ele é como um parasita emocional, só exibirá suas características mais terríveis se conseguir se infiltrar no seu hospedeiro. O parasita só é verdadeiramente parasita se está em você, ou em alguém, certo? O que quero dizer é que: se ele viver na sua, uma vida longa e livre de hospedeiros, ainda que não passe de um esquistossomo mesquinho, ninguém poderá chamá-lo de parasita, não é mesmo? Um narcisista, da mesma forma, precisa de alguém, precisa muito de alguém: um familiar, um amigo, um amante. O narcisista não cultiva inimigos, ele cultiva amizades. É um vampiro: que erra de noite e de dia.

2

A ligação da Sra. Feliz

Há dois anos o Sr. R recebeu um telefona em seu já anacronístico telefone fixo. Uma voz feminina perguntou sobre um cavalheiro, um tal Sr. T. O Sr. R disse não conhecer o Sr. T. A voz feminina quis saber então do Sr. R. Ele considerou aquilo pouco usual, deu desculpas, queria desligar o telefone, mas a voz era insistente e doce e o Sr. R era um homem sozinho. A conversa se esticou, o Sr. R descobriu que falava com a Sra. W. Como todo o homem de idade, que conversa com outra pessoa de idade, o assunto logo recaiu para as doenças. A Sra. W conhecia todos os doentes de seu edifício, mas ela mesma estava perfeitamente bem. O Sr. R, no entanto, passava por um momento complicado. ‘Complicado’ é a palavra que se usa quando as coisas são complexas ou não muito palatáveis. No caso do Sr. R, não eram palatáveis. Para os seus médicos, também não eram simples.

As ligações da Sra. W continuaram. Queria saber do Sr. R, não mais do Sr. T. Perguntava-lhe da doença, dos remédios. O Sr. R não mais pensou no caráter pouco usual de sua situação: uma mulher que passa a manter contato por telefone com um estranho a quem ligara por engano. Ele, por sua vez, fazia o mesmo, embora as ligações nunca partissem de si. Era sempre a Sra. W quem ligava. Ela lhe contava do marido, das viagens que fazia, dos filhos muito bem encaminhados. O Sr. R não podia acompanhá-la: não tinha mulher, não viajava, não sabia de sua filha. O que o Sr. R tinha era uma doença, e isso parecia interessar muito a Sra. W.

Passaram-se alguns meses após a última entrevista entre os dois, nesse meio tempo o Sr. R tinha se recuperado, estava feliz e pleno, aguardava ansioso pela ligação de sua amiga distante. Um dia a ligação aconteceu. A Sra. W lhe perguntou: - ‘’E o teu problema, meu caro?’’ O Sr. R, com um sorriso na boca e lágrimas a se desenhar nos olhos, disse-lhe: - ‘’Não há mais problema! Estou muito bem! Até fui à praça hoje pela manhã, sentar-me ao sol, tomei um sorvete, acredita?’’ A Sra. W não lhe respondeu, a linha do seu lado era puro silêncio. O Sr. R esperou, esperou, o seu sorriso foi se desvanecendo... ‘’Alô? Sr. R, me desculpe, tive de sair por um momento. Quer dizer que não há mais nada com o senhor? Que bom! Que maravilhoso! Olha, outra hora nos falamos, surgiu um imprevisto... Que pena, quero dizer, que bom que está bem, pena não podermos conversar agora...’’ O Sr. R disse que compreendia e se despediu da Sra. W. Esperou ansioso pela sua ligação nos dias que se seguiram.

A Sra. W nunca mais lhe ligou.

3.

O conselho do douto

Menina, ele ou ela dará a você carinho e mimos, será educado e cordial, amigo e anjo. Será tudo isso no primeiro estágio. O segundo estágio começa com um pequeno incidente. Você talvez nem o note no exato instante. Encarará o pequeno incidente como algo comum à natureza humana, um ruído no seu humor costumeiro, você dirá de si para si: - ‘’às vezes as pessoas estão irritadas, com problemas, põe-se estúpidas para com os outros sem o querer de fato...’’

Diga que se sente muito feliz e ele ou ela terá uma perda de brilho nos olhos. Diga que se sente muito triste e ele ou ela lhe contará de assuntos pessoais muito mais terríveis e muito mais dignos de lamúria e lágrimas. Corrija a ele ou a ela, censure-lhe por algo, e tão rapidamente receberá, como um reflexo, um contra-ataque severo. Se forem da mesma altura, não use saltos altos ou botas, pois lhe surpassará em alturas e isto não será bom. Se ficar doente, tenha a certeza de que ele ou ela tem uma doença deveras mais grave. Se ganhar uma bolada na loteria, esconda o dinheiro em algum buraco se quiser conservar a sua amizade. Se ganhar notoriedade, bom, aí não terá como mantê-la, terá de conhecer outras pessoas. Ele ou ela quer atenções, o tempo todo, e se você puder fazer isso, dar-lhe ubíquas atenções, um dia, ele ou ela, perguntar-lhe-á porque não se afasta um pouco, pois afinal estão sempre juntos e ele ou ela precisa respirar: ‘’é demais!’’.

Você lhe compreende o mecanismo e passará a vê-lo como uma máquina cujas respostas são sempre exatas. Falta-lhe alma, e você será feliz a seu lado apenas durante o tempo em que conseguir fazê-lo sorrir, se sorrir você mesma, trate de não sorrir muito, pois ele tem de ser o mais feliz, o mais belo, o mais sábio, o mais rico, e também o mais pobre, o mais ignorante, o mais feio, o mais triste e o mais desgraçado. Você, menina, é seu espelho. O espelho é sempre um instrumento da beleza: quando não lha reflete, não lhe tem serventia.