Íntimo e pessoal

Eu já havia visto casos na mídia de Impessoas que voltavam para casa - ou, mais especificamente, para os lugares onde seus Moldes haviam vivido, ou dos quais tinham alguma lembrança em particular. Eu sabia que as Impessoas não escolhiam esses locais aleatoriamente, deveria haver alguma boa lembrança associada aos mesmos. Tudo isso veio à minha mente quando tocaram a campainha certa manhã de sábado, e ao atender, vi-me diante de Osman.

- Olá, Bitsi! - Saudou-me sorridente. E, para que eu não tivesse dúvidas sobre o que ele era, encostou a palma da mão na placa de identificação ao lado da porta. Uma luz vermelha acendeu-se sob a mesma, e uma voz gravada alertou:

- Impessoa detectada.

- De todas as Impessoas que poderiam vir bater à minha porta, a última que poderia imaginar seria você - declarei, parada na soleira com os braços cruzados.

- As lembranças de Osman sobre você são particularmente boas - admitiu o não-Osman.

Balancei lentamente a cabeça.

- Está bem. Vou lhe convidar para entrar e vai me explicar isso melhor.

O não-Osman entrou depois de mim, olhando para todos os lados dentro da casa. Parecia estar tentando lembrar-se de detalhes, ou então identificar o que havia sido alterado desde a última visita do Molde; o que, neste caso, ocorrera há uns seis meses.

- Você trocou a geladeira - observou.

- Já era tempo - repliquei com amargura. - Você... o Osman sempre falava algo sobre o congelamento rápido não gelar a cerveja dele rápido o bastante. Embora eu não a tenha trocado por isso.

- Cerveja... sim, Osman gostava muito de cerveja - recordou a Impessoa, mão no queixo.

- Toma café? - Indaguei, mostrando a mesa posta de onde eu me erguera para atender à porta.

- Creio que posso acompanhá-la - acedeu o não-Osman, sentando-se antes de mim numa atitude típica do velho Osman, e servindo-se do que havia para comer. - Ainda compra dessa geleia de laranja? Bom!

Sentei-me e continuei a beber meu café, xícara entre as mãos, observando o não-Osman deglutindo um sanduíche lambuzado de geleia.

- Senti muito a sua falta, Bitsi - assegurou o não-Osman, falando de boca cheia.

- O que me deixa curiosa, já que da última vez em que estivemos juntos, na minha cama, e eu lhe perguntei se estávamos num relacionamento, você... foi extremamente vago - retruquei.

- Osman não queria admitir que era mais do que uma transa casual - o não-Osman deu de ombros.

- O sexo era bom - tive que admitir. - Mas se você vai para a cama mais do que duas vezes com a mesma pessoa no espaço de um mês, eu imagino que isso deva significar alguma coisa.

- Osman gostava de você. De verdade - disse subitamente o não-Osman, muito sério. - Mas tinha receio de não ser bom o suficiente para assumir um compromisso.

- "O problema não é você, sou eu" - comentei de modo irônico.

O não-Osman parou de comer e me lançou um olhar magoado.

- Eu tenho as memórias do Molde. Se lhe digo que era isso o que ele realmente sentia, pode crer que estou dizendo a verdade. Por que haveria de mentir? Osman está morto!

Pousei a xícara no pires, cotovelos na mesa, rosto nas mãos. Comecei a chorar.

- Eu sei! Eu sei!

Só percebi que ele havia se levantado quando senti suas mãos grandes nos meus ombros. Depois, delicadamente, puxou meu cabelo para o lado e me deu um beijo no pescoço.

Aquilo era... tão Osman.

- Vai ficar tudo bem - sussurrou ele.

Então, me pegou no colo e me levou para o quarto. Me pôs na cama, fechou as cortinas e se deitou ao meu lado. Depois, cobriu meus olhos com a mão esquerda e disse:

- Quando acordar, vai se sentir melhor.

Adormeci.

Quando acordei, o não-Osman havia ido embora, e com ele, levara toda a minha raiva e o meu ressentimento. Abençoada seja você, Impessoa. Onde quer que esteja agora.

- [16-04-2020]