A república dos bobos
Eu, um bom homem, vencera a longa fila de uma agência de empregos. A minha frente, uma moça com traquejos de máquina me perguntava:
- Trabalho interno ou externo?
Indeciso, eu lhe respondi: ''Quero ser político.''
A moça, volvendo-me as correias e as válvulas, mirando-me nos olhos, questionou:
- Quais tuas ideias políticas? - pondo-se rija sobre o meu currículo. Com uma caneta à mão ela aguardava minhas grandes ideias. Um senhor às minhas costas dizia, sobre o meu ombro: ''- Política não é emprego, não é profissão!''. Atrás dele, uma senhora lhe perguntava: ''E quem o senhor pensa que é? Tenho um sobrinho deputado'', e lhe mostrava a foto do próprio, acrescentando sobre a persona do parente elogios que lhe justificavam a profissão perigosa e ingrata.
- Quais tuas ideias - a máquina me voltava a pergunta.
- Sou neto de um abolicionista americano, - disse o senhor - um mau caráter dos bons ele era.
- Quero legalizar o aborto e a eutanásia, - eu respondi à moça - Quero legalizar também a pena de morte e liberar armas de fogo para os homens e mulheres de bem.
- Por acaso o senhor é racista? - perguntava a senhora ao senhor - Como um abolicionista poderia ser um mau caráter?
- Decida-se, - disse-me a recepcionista - Direita ou esquerda?
- Ora, menina, esse rapaz é da extrema-direita - vociferou o senhor, cuspindo de excitação para todos os lados - Quer matar a todos, o genocida: aborto para os bebês. Eutanásia para os doentes. Pena de morte para os prisioneiros. E uma bala na cabeça para todo o resto, sem distinções e preconceitos, como a própria morte negra o faria.
- Racista! Como pode chamar a morte de negra? - esbravejou a senhora.
- Cale a boca, velha - disse o senhor, virando-se para trás - A senhora por acaso conheceu meu avô? Não havia nada de bom naquele homem.
- Mas ele era um abolicionista - disse a moça da recepção, ainda curvada sobre o meu currículo, as feições um pouco mais suaves, os membros mais relaxados.
- Sim, um abolicionista - disse eu, como num palanque - Alguém inconformado de ver um homem reduzido à mísera e vergonhosa condição de escravo!
O senhor riu e disse: - Inconformado de ver um homem reduzido à mísera e vergonhosa condição de escravo? Ele não era um homem inconformado de ver outro homem reduzido à mísera e vergonhosa condição de escravo! Sabe o que ele era? Ele era um abolicionista!
- Qual a diferença? - perguntou-lhe a moça da recepção, mais humana.
- Sim, velho, - cresceu a senhora para cima dele, aumentando a voz - Qual a diferença?
- A diferença?, - o senhor, incrédulo, ora mirava um ora outro de nós - Se o maldito tivesse nascido no sul, se ganhasse a vida com as colheitas de algodão do papai, teria sido escravocrata; como nasceu no norte, onde era proibido o uso e o comércio de escravos, até porque as terras não eram boas... como era ambicioso e queria muito poder para si e entrar no âmbito político, o que lhe restava? Ora, o abolicionismo!
- Extrema-direita, então? - indagou a moça para mim, a caneta na mão.
- Os vermelhos também matam, mocinha - gritou a senhora - E esse moço aí quer matar a todos com as suas ideias assassinas.
- Sabem porque a escravidão acabou? - perguntou-nos o senhor, falando somente para si, os outros não mais lhe ouviam as palavras - As máquinas! O assalariado arca com os custos do seu próprio desgaste, o escravo não, quem arca com os custos deste é o patrão. As máquinas devoravam os homens, não havia sindicatos como agora, amigos, sendo assim, era preferível aos patrões manter uma certa distância de seus empregados, a essa distância a história deu o nome de liberdade.
- Quer matar mesmo a todos - perguntou-me bocejando a moça da recepção - Os bebês, os doentes, os prisioneiros e todo o resto?
- Por que a política, meu rapaz - disse o senhor, calmo e solícito, a mão no meu ombro.
- Eu li que o homem é um animal político - respondi-lhe, augusto.
- Vermelhos... - disse a senhora de si para si - Sempre identificando os homens aos animais, tirando-nos a graça, tentando continuamente imanentizar o eschaton...
- Sendo assim - concluiu o senhor - Já o somos todos.
- Temendo não ser homem..., - comecei, às poesias - deitei com uma mulher. Investigando minha animalidade, dormi ao relento, sob as estrelas. Curioso sobre a minha política, pus-me a representar.
- A representar? - questionou com desconfiança a senhora.
- Somos um governo representativo - explicou-lhe o senhor - Contamos as pessoas que vivemos sob uma democracia, porque a palavra é bonita, evoca na mente colunas gregas, togas e homens barbudos respeitáveis, mas a sua participação, a participação do povo, é indireta, sua vontade é filtrada pelas cabeças de homens que, sem que os conheçamos, é-nos entregue a decisão de confiar. Não confiamos os trocados do leite aos nossos irmãos!
- A voz do povo é a voz de Deus! - berrou teatralmente a senhora às nossas costas.
- Quer dizer que... - começou a recepcionista, quase a dormir, os membros moles - se nosso representante é escolhido pelo próprio bom Deus, excetuando-se a velha tradição hereditária, vivemos como que sob uma monarquia?
- Não diga bobagens, menina tola - disse-lhe a senhora - E vamos com isso! Está esperando o que? Uma revolução estourar? Tenho meus assuntos para resolver.
- A república ateia foi um sonho febril e fugaz- colocou no ar sonhadoramente o senhor - A dieu la monarchie - riu-se ele.
- Político, é isto? - perguntou-me a moça da recepção.
- Agrada-me a ideia de rei - respondi-lhe sem lhe responder - Há vagas?
- Reis sempre há, meu rapaz - disse-me o senhor - Bobos também. Bobos há por toda a parte. Há vagas para bobos? - perguntou ele à moça, lançando o motejo por sobre o meu ombro.
- Curiosamente, meu senhor - respondeu-lhe ela, espreguiçando-se - Ainda tenho três vagas desse tipo aqui comigo. Todos as evitam, mas acabam por fim recorrendo a elas, por profissão ou, mais comumente, por vocação.