De nuvens, lugares e interrogações muitas
- Ainda somos humanos, não somos?
Isto me perguntava Alice, que naquele momento poderia tanto me ser uma namorada, uma amiga, uma estranha, ou uma personagem dos livros. Estávamos os dois à espera de um carro, sentados os dois num banco bonito de praça; gostaríamos de estar no Observatório de Rockfeller Center; gostaríamos de estar sentados de frente para o Taj Mahal; na escada para o céu de Zhangjiaji; a observar as águas cristalinas e rochosas do Árnon na Jordânia; ao lado do Leão de Roccapina a mirar o mar; entre as ruínas insulares romanas; queríamos mesmo desfilar entre as grandes colunas do templo de Ártemis ou nalgum lugar mágico de onde pudéssemos observar as misteriosas pirâmides gêmeas do lago Moeris; mas estavámos lá, entre as gentes como nós, num banco bonito de praça, assento que não era ruína, mas não estava arruínado.
- O que quer dizer com 'humano', Alice?
- Sim, exatamente, ela me respondeu, ser humano é ser bom? Somos bons?
- Você e eu?
- Sim, nós dois. Primeiro nós.
- Sem pensar muito, eu diria que sim, somos bons.
- E se pensasse um pouco mais?
- Aconteceria o que sempre acontece quando se pensa um pouco mais: fica-se na dúvida. Alice, o carro.
Ela segurou meu braço. Não, deixe que vá, ela disse, isto é importante, este momento. Devo descrevê-la? Devo compará-la? Cotejá-la com outras? Detalhar-lhe os trejeitos? As medidas? As cores, os risos, os seios, os medos? Ela estava ali a me encarar como se ali estar fosse a coisa mais importante que pudéssemos fazer. Entre as gentes, numa praça qualquer que se tornava nossa, pois seria por nós guardada. Lembraríamos depois que nela sonhamos. Ali, sem o saber, tão somente vivíamos. Esperávamos. Alice perguntava, e se pensasse um pouco mais?
- Maniqueísmo é um conforto, eu disse, o dualismo humano também.
- O conforto é uma ilusão?
- A pedra no nosso caminho é a flexão do verbo ser com o qual identificamos as coisas.
- Você também cometeu esse erro: 'Maniqueísmo é um conforto'.
- Sim, eu sei. É difícil não fazê-lo.
- Conforto, dois pontos, uma ilusão?
- Danada. O verbo que identifica está implícito. Bom, este banco em que estamos os dois sentados nos é confortável, mas, acho que ambos concordamos nesse ponto, não é uma ilusão. As ilusões, por sua vez, são todas confortáveis. Do contrário, seriam alucinações, não é?
- Se esse fosse o nosso fim, hoje, agora, como acabaríamos? Se contemplássemos o céu todos os dias e todas as noites tudo o mais se nos afiguraria como mesquinhez, não?
- Refere-se aos macro universos sociais e aos micro universos domésticos?
- Sim, a eles. Não consigo conceber um astrônomo que se tenha suicidado.
O céu era de um azul claro. Sem nuvens. Cerúleo. Foi uma supresa quando eu descobri, ainda criança, que as nuvens tinham nomes. As nuvens! Plocus, uncinus, vesperalis, Glória da Manhã, por onde voam? As nuvens. Aristófanes. Nephelae. Néphos. Delfos.
- Alice, e Delfos?
- Seria bom. Acabaríamos bem.
- O que perguntaríamos a pítia?
- Perguntaríamos: valeu a pena?
- E qual seria a sua resposta?
- Não sei qual seria a resposta. Sou como você, como as gentes que passam, eu tão somente faço as perguntas.
Outro carro haveríamos de tomar. Ainda era cedo. Tínhamos tempo. Alice, de seu lado, se silenciara. Algo lhe ocorrera. Os budistas se tornam iluminados, os descrentes caem, uma vez ela me disse. Por que caem, eu lhe perguntei? O porquê de caírem não importa, curioso e frustrante é que continuam a sonhar, foi sua resposta. Acho que era isso: Alice sonhava. Outro carro chegara. Entramos os dois. No banco traseiro, mirando-lhe de canto a cabeça que descansava no meu ombro, eu pensava: ter a ciência de que ela sonha me põe acordado?