Coco e Dolores, sobre as margarinas

Coco e Dolores assistiam TV, enfezadas as duas com a programação que, em mais de meio século, nunca se renovara uma naca. Dolores zapeava os canais, movendo-se com os dígitos: 018, 14.2, 111, etc. Coco protestava, não a sua amiga, mas a algum ouvinte invisível e todo-poderoso - não, não a Deus - a si mesma, quem sabe, com plenos poderes e plenas razões:

Coco - Esses comerciais de margarina... No futuro, quando os dicionários forem ilustrados com imagens móveis esses comerciais deverão figurar ao lado de palavras como ''fantasia'' e ''idealismo''; dividindo os espaços da página com um unicórnio e George Berkeley, respectivamente.

Dolores - Você acha, Coco? Eu vejo muita realidade nesses comerciais. Parece até a casa dos meu tios, Josefina e Nicolácio, durante as celebrações que realizamos anualmente em sua casa.

Coco - Não tenho dúvidas. À sua saída e à saída dos outros convivas o titio Nicolácio e a titia Josefina caminham de mãos dadas até o quartinho da empregada e lá, retirando a lona de cima de uma gaiola enorme, dão de comer a jovem empregadinha uma suculenta papa de batata e farelos de pão, uma dieta de engorda que...

Dolores - De onde você tira essas coisas?

Coco - O meu comercial seria assim: uma câmera discretamente vai adentrando uma casa, um corredor e uma sala ensolarada com uma grande janela, em um completo silêncio... Porque eu já notei: com todos esses comerciais barulhentos, as pessoas à sala, as famílias, elas eventualmente se põe surdas a essa poluição audiovisual, mas quando por instantes, por algum milagre publicitário, faz-se o silêncio em suas casas, todas elas param, como que enfeitiçadas e viram as cabeças para a TV...

Dolores - Com quantas famílias você já esteve enclausurada?

Coco - Bem, de repente, PÁH! Começa uma briga violenta, evita-se os palavrões e as associações grosseiras, mas se eleva o tom de voz das pessoas à mesa, dedos acusadores apontando, cadeiras caindo para trás, choros descontrolados e...

Dolores - E...

Coco - Alguém, um filho, ou quem sabe um pai, tomará de uma faca sem serra, de manteiga e a enfiará no peito de alguém. Primeiro o silêncio, depois a câmera lenta. Detalhe: ao ser retirada a faca, o que sairá do peito da vítima não será sangue, jorros de margarina luzidios e densos, brilhantes de Sol, escoarão da ferida. O homicida lamberá a faca com deleite. Os outros trarão seus pedaços de pão e seus pratos para aproveitar da fonte milagrosa que sai do peito ferido. Tudo em câmera lenta...

Dolores - ...No mais profundo silêncio?

Coco - Não! Haverá música! Erik Satie ou...

Dolores - Satie é muito batido e muito lento.

Coco - O que quer dizer com muito batido?

Dolores - Você precisaria de alguém com dedos mais rápidos.

Coco - Alguém mais jovem?

Dolores - Uns bons cem anos mais jovem.

Coco - Mozart?

Dolores - O primeiro concerto de piano. Terceiro movimento.

Coco - As pessoas se lambuzando de margarina como canibais, lambendo as facas, os dedos...Seria lindo.

Dolores - Como tudo acabaria?

Coco - O que?

Dolores - O homem ou o filho ou a pessoa esfaqueada não poderia morrer na frente de todos entre comerciais no horário nobre.

Coco - Tem razão, Dolores. Bom, mas porque não? Sim, porque não? A violência está em alta, Dolores, é o tema mais abordado ao lado do amor, poderíamos concluir o comercial com uma advertência policial e um número de telefone.

Dolores - Seria um comercial de margarina e tanto.

Coco - Sobreviveria algumas horas no ar para a alegria de poucos. Como o comercial onde Jesus caminhava sobre as águas, pisando cuidadosamente sobre as pedras próximas à superfície, para o logro de todos. Ou aquele em que uma atriz maravilhosa e suas incontáveis cópias eram entregues em todas as casas da rua como um produto indispendável ao bem estar dos homens tal a cerveja e os demais álcoois o são ou deveriam ser.

Dolores - Alguma coisa Borges, não era?

Coco - A atriz? Não lembro, mas era um bom comercial.