O futuro e coisas afins
Como o futuro conceberá o futuro? Que associações há ligadas a essa palavra? Superpopulação de um lado, densidade demográfica mínima de outro. Escassez de combustíveis fósseis, de água. Tecnologia avançada. Primitivismo pós-histórico. Híbridos de homem e máquina. Flora e fauna artificiais. Corporações colossais. Indivíduos sem identidade. Castas plutocráticas. Uma filosofia falida mergulhada em debates terminológicos. Maravilhas científicas. Mãos modeladoras invisíveis da engenharia social no ápice da expertise. Viagens interplanetárias. Miscigenação interespécie. Formas de vida extintas em exibição. Jovens gênios se tornando multimilionários da noite para o dia. Privacidade como luxo. Novos narcóticos. Novas ansiedades. Novos gurus. A arte, uma superposição de contextos. Não mais culturas, mas tribos. Não mais nações, mas grandes aglomerados comerciais interligados por dívidas e bancos. Altas taxas de sociopatia entre os jovens. Guerras relâmpagos. Cripto-cultos. Cripto-deuses. A comoção popular, uma onda num gráfico. Agentes de polícias secretas entupidos de fármacos. Representantes fantasmas, como escritores fantasmas. As versões como substitutas dos segredos. Coliseus iluminados por luzes de neon. Suspensões imprevistas de direitos civis. Imprensa autônoma...
Pensava eu nessas coisas quando no meu quarto. No computador ligado tocava uma playlist pirata com canções do decadentismo do século vinte: os anos noventa. Aberto sobre o colo um discurso de Rousseau. A escrita e suas idiossincrasias: quando eu li um livro de David Hume me era informado na introdução que ele, Hume, havia brigado com Rousseau. Dada a ordem das palavras, pensei que o escocês perdera a paciência com o amigo e começou a briga. Quando li há pouco a introdução do livro de Rousseau, era-me informado que ele, Rousseau, foi quem brigara com Hume. Dada a nova ordem das palavras, passei a pensar que foi o suíço quem perdeu a paciência com o amigo e começou a briga. A introdução do livro de Hume o coloca como aquele que brigou com alguém. A introdução do livro de Rousseau, por sua vez, coloca-o como aquele que brigou com alguém. Tudo dito e feito, pergunto-me, quem brigou com quem? Pobre de quem depende apenas das palavras. Perdido no tempo aquele que tem dois relógios. Ah, relativismo...
Na TV, uma cobertura sobre o evento no presídio metropolitano. Um grupo de homens e mulheres de bem, armados todos, esperam os portões da prisão serem abertos e os presidiários todos liberados. Será um massacre. Alguns condenados com sorte escaparão. Parece cruel, mas não é pior do que o garrote vil em praça pública. Somos selvagens? Não, diria Rousseau, o selvagem era inocente. A evolução não é um progresso, é uma adaptação. É como um jogo onde as peças tem de ficar em equilíbrio, mudam as faces no tabuleiro, mas a nova face não é jamais melhor do que a primeira, ela é apenas diferente. Nosso moralismo e nossa ética foram configuradas de acordo com nosso meio. Seria necessário uma catástrofe para que mudássemos. Foram os dinossauros pecadores? Tivessem alguns deles sobrevivido e escrito com suas patas feias um livro, provavelmente diriam eles que sim. Os homens estão sendo fuzilados, apostas foram feitas para se adivinhar quantos deles escapariam, fogos de artifício são lançados em minha rua para comemorar o evento anual. Na playlist, enquanto Dolores O'Riordan canta sobre zumbis, nalgum lugar além do tempo, concentrados os dois, o cético e pessimista jogam xadrez.