A dança

Eu dançava intrépida, convulsivamente, como se medicada, como se ouvisse Frank Healy a cantar Side, ou Brandon Flowers interpretar Somebody Told Me. Sensual como Sienna Miller em Layer Cake, mas com ferocidade, sem charmes, só egoísmos, solipsista no meio da pista de dança, como os mortos após a Terceira Guerra Mundial no conto de Matheson. Eu era uma boneca de posto. Uma boneca de pano de muitos pares invisíveis.

Eu dançava como se comigo estivesse Aleister Crowley a inspirar junto a mim a dama branca. Frenética, como invertebrada, uma freira histérica nos tempos da Inquisição. Quase a subjugar as forças da gravidade como as bruxas no sabá de Goya. Saltava como uma pirata a quem as crianças enfiam travessas as facas. Eu era uma bandeira estropiada. Estandarte de carnes salazes e molhadas.

Eu já não escutava a banda. Era surda para os metais e tambores. Percebia somente as vibrações sonoras e as luzes variegadas e termais. As minhas vistas perderam o dom de conceber a profundidade, a tridimensionalidade, eu me movia num mosaico de cores sobrepostas. Uma voz, como num sonho fugidio, me falava de fundações frágeis e premonições. Em derredor e em torno de mim corria ecoante uma trilha de risos. Sob os meus pés o universo abria uma de suas bocas de verme e eu era tragada.

Eu depertaria mais tarde nalgum momento nalgum lugar. Recuperadas as dimensões eu me veria num pequeno quarto branco. Ao meu lado, aos prantos, meus pais me diriam que eu tive muita sorte. - O clube desabou. Você sobreviveu.