O comércio dos homens

Mais de cinco bilhões de pessoas no mundo e somente eu nesta estrada e eu não vejo nada nem ninguém.

Do lado de fora deste bar não há ninguém vivo...

De quem é este verso? Quem canta essa música?

Do lado de fora deste bar não há ninguém vivo...

Até onde a vista alcança correm campos que não são os meus. Atrás de mim um armazém que nunca visitei. Espero por um homem a quem chamam apenas de Aviador. Espero há demasiado tempo. Às minhas costas o aparente proprietário do armazém pergunta de onde venho. Para onde pretendo ir ele o sabe bem. Ao seu lado os salames e as linguiças dependuradas se movem vagarosamente como sinos de vento. Convida-me ele para entrar: aborrecido, aceito.

O local é demasiado escuro. Paro passos depois de entrar para dar tempo às vistas. O homem, mais amigo, passa a conversar mais animado, atropela as palavras. Não o compreendo bem: sorrio-lhe. Pergunto-lhe do Aviador.

Ah, o Aviador...(Balbucia coisas e logo muda de assunto)

O homem me oferece queijo, carne picada e vinho. Recuso os víveres, mas aceito de bom grado um banquinho de madeira. - Há muita gente no mundo, sabe - diz-me ele, bebido de vinhos e carnes, arrastando as palavras, em tom distraído, quase sonhador. - Sim, eu pensava nisso lá fora... - Mas as terras pertencem a poucos. - O senhor é... - Não! Os únicos vermelhos aqui estão lá na frente dependurados, como pode ver o senhor. - O Aviador, pelo que ouvi das bocas, é um desses poucos. - Um dia os homens perceberão que pertencendo naturalmente a outros são como pasto, nada mais do que isto, embora nós homens nos assemelhemos mais ao gado, não concorda o senhor? - Admito que não me ocorreram essas ideias, para que eu possa ou não lhe endossar a opinião. - Hão de lhes ocorrer, eventualmente. - Não sou um homem que cultiva reflexões - Mas veio para trabalhar na terra! Não dou nas vistas mas posso lhe dizer que sou um homem lido: Adam Smith, Ratzel, Nietzsche... O Aviador mos emprestou as obras. Homens perigosos se o leitor não tiver a cabeça no lugar... - O único homem a quem li em minha vida foi Hans Christian Andersen. - Anoitece lá fora... O Aviador não costuma aparecer às escuras. O senhor deverá pousar aqui e ter com ele amanhã. - Realmente, não é neces... - Homem! O senhor não é o primeiro a se desencontrar por estas terras. Fique! Beba um vinho, coma um queijo, coma as carnes... - Esse Aviador não parece ser um homem que cumpre seus compromissos. - Beba! Beba! Ele é um homem de muitos ofícios, por isso lhe chamam assim, está lá, está cá, ora num lugar, ora noutro... - Bebamos então! - Sim, bebamos! Contou a alguém que viria para estes lados? - Não, sou um homem só. Sem família, sem amigos. - Alguém mais ao ônibus além do motorista que o conduziu? - Uma senhora... estava lá na frente, parecia dormir... - A senhora B., provavelmente. - A senhora B., sim... - O senhor é um homem forte. - Mas tenho os punhos pequenos... é engraçado, recusaram-me muitos trabalhos por isso... punhos pequenos - Muito forte e vigoroso. - Do lado de fora deste bar não há ninguém vivo... - O que disse o senhor? - Uma música... um verso - Não estamos em um bar, senhor. - Sacolejam as carnes lá fora, como sinos... - Sim, como sinos silenciosos. Sabe, amanhã chegará aqui outro homem. Alguém compromissado com o Aviador. Alguém forte como o senhor. Sem família, sem amigos, sem malícias. Aborrecido ele se sentará comigo, neste mesmo banquinho de madeira onde descansa agora. O desgraçado beberá do meu vinho, comerá do meu queijo e comerá também das carnes do senhor...