Cineasta perdido

Fryderyk Olek era um cineasta de vanguarda. Denominava a si próprio cineasta de vanguarda. Vanguardista, não. Não lhe agradavam esses adjetivos abstratos, com seus sufixos nominais que se colam às rabas lhes dando ares de emblema. Gostava das preposições. As preposições traçam limites entre uma coisa e outra. Olek era cineasta, trabalhava com movimento e imagens. Como cineasta de vanguarda, Olek estava alheio, às margens, a frente.

Ele gostava dos planos simples. Planos sem cortes e sem sequências. A câmera, um ciclope prostrado sem pálpebras. Os seus atores, se é que se podia chamá-los assim, deslizavam a frente do olho estático e atento. Os cenários mudavam. Muitas vezes mudavam sem que se mudasse a posição, os gestos e o semblante dos personagens, se é que personagens de fato o eram. O preto e o branco lhe eram vistos como o pináculo da expressão, um recurso que, segundo ele, eliminava ao máximo as variáveis emocionais contidas nas cores. Sem as cores, tem-se o controle de tudo. Agradava-lhe a arquitetura das coisas: a sombra discreta sob uma cornija; a maneira como as colunas, melindre percebido pelos antigos gregos, acinturam-se perante o Sol; as poças d'água que, imitativas e perfeccionistas, tornam-se tão profundas quanto os mais altos edifícios. Queria homens robustos de queixo forte. As mulheres, queria-as belas. Não queria lhes ouvir as vozes. Filmá-los-ia até perderem a vanglória. Roubei-lhes a comédia, dizia, depois de mandá-los embora, findas as gravações.

Desagradava-lhe produndamente a narrativa. Para ele, os narradores eram todos insidiosos. Cada obra deles era projetada como uma estrada onde se punham a dizer, enganadores, Venham por aqui, eis o mundo, cá o bem, acolá o mal. Dava valor à imagem, a que pudesse compor, ao movimento, que lhe fosse possível exigir, à sombra, que lho agradasse. Não gravaria uma batalha, nos campos ou nas ruas, pois, perguntava ele, que realidade há numa batalha. Não gravaria um discurso exaltado em meio a homens reunidos, pois, também se perguntava, que realidade há num discurso. Não registraria outras tantas coisas pelas mesmas razões. A realidade deve lhes ser terrível, pensava Olek, todos estão sempre a evitá-la, dão-lhe nomes, cobrem-na de métodos e sistemas, enfeitam-na com narrativas...

Nos últimos anos de sua vida, Fryderyk Olek dispensou os homens e mulheres que, solícitos e amorosos de um lado, cobiçosos de imortalidade de outro, procuravam-lhe em sua casa para que o velho homem se servisse de suas ferramentas como bem entendesse. A câmera, virou-a para si. Passou a se gravar por todos os dias. Não havia mais cuidado. Não havia mais arte. Sentado próximo a janela, a forte luz do Sol lhe ofuscava o rosto. Viam-se as mãos sobre os joelhos, o peito que arfava, os pés imovéis, horas a fio. Outro curto filme mostrava uma mulher jovem entrando em sua casa vazia. Chamava-lhe pelo nome, e cautelosamente ia atravessando a pequena sala. De repente percebia a câmera que lha mirava de canto. Naquela casa fora atriz, parecia se lembrar das imagens suas que nunca contemplara. Distraída, não veria um sapato lhe ser lançado de dentro dos quartos. Escaparia por pouco antes do homem enfurecido acertá-la com as mãos. Olek, ofegante no meio do aposento, caminharia em direção a câmera e a desligaria.

Sozinho, as louças por lavar à pia, as camas desarrumadas e o vento a lhe cobrir a casa de folhas, o cineasta acabaria por registrar num fim de tarde o próprio processo da morte, tema que nunca lhe interessara, registro que provavelmente teria desprezado como uma bagatela, detalhe dispensável e mórbido que uma vaidade a quem nos últimos anos deixou de reprimir acabou por prover à posteridade. Posteridade esta que lhe desconheceria em absoluto o nome e as razões.