Fins de noventa

A grande frustração de minha vida, a perda que me tornou o homem que sou, magnânimo e asceta, despojado de vícios e males tantos, foi nunca ter ganho de meus pais, que me presenteavam com caixas embaladas de mistério e esperança, mais esperança e mistério que presentes, um moderno Tamagotchi. Pikachu era famoso então. Todos jogavam Street Fighter II no Windows 98 sem nunca ter visto ou sequer ouvido sobre o Street Fighter I. Esperava meu primo, para jogarmos os dois, eu, com o brasileiro Blanka, ele com Chun Li. De mãos ao colo, sem tocar em nada, o aparelho lhe pertencia, a escrivaninha lhe pertencia, o teclado, o gabinete, o ar perfumado. Esperava. Esperava. O protetor de tela era uma ilha onde havia um náufrago que se alimentava de cocos e esperava sempre em vão pelo resgate. Sentia-me eu também naufragado, perdia ali, paulatinamente, sem o meu Tamagotchi, os instintos paternais, as vontades de ter e cuidar de alguém tão pequeno como as criaturas virtuais de meus amigos.

Na TV via Kate Holmes, em plena luz do dia, com seus amigos da escola, amarrar a professora à cama e mantê-la em cárcere privado na própria casa. Semana anterior vira Ferris fazer gato e sapato do seu diretor. Eram tempos neuróticos onde se fazia nas telas o que, nos recessos da mente diabólica, no fundo se desejava fazer contra os instrumentos da educação escolar. Sandra Bullock, no profético The Net, era uma mulher que vivia cercada de computadores, conexões virtuais e que acabaria por perder a própria identidade. Foi quando comecei a gostar de pernas. Não, isso foi depois, com Miss Simpatia. Mas eu não pensava nisso, era um trabalho inconsciente, eu queria ser um gorgonóide.

Na época encontrei na sala de aula em que estudava uma tesourinha metálica dobrável, anos depois, fazendo o vestibular, em outra escola, em outra sala de aula, a tal tesourinha, esquecida no meu bolso, quase me eliminaria da prova. O que há de mais nessa tesoura? Nada, exceto que ela ainda se mantém viva, cortando unhas e dobrando-se sobre si mesma. Quero levá-la para o túmulo, afinal é sob a terra que as unhas e os cabelos mais necessitam de uma. Eu colecionava VHSes. As capas das mídias afinariam, as pernas das moças engrossariam, mas eu quisera realmente colecionar cachimbos. Mais tarde quereria fumá-los. Um me seria suficiente então. Da Idade Média eu conhecia a corveia. Os impostos eu não conhecia, era muito jovem ainda. Em algum lugar falava-se muito do Dogma 95, mas cinema para mim era entretenimento, era americano, era cheio de valores estrangeiros e hierarquias sociais. O mais engraçado de tudo é que minha libertação da narrativa do Tio Sam se deu com Taxi Driver. Eu queria mais daquilo. Mais que aventura, mais que meramente passar o tempo. Foi quando eu, Sul-Americano, descobri a Europa, as suas terras férteis e pouco pisadas. Depois veio o resto do mundo.

Acabei não escolhendo Blanka, escolhi Dhalsim. A luta, eu perdi. O pacifista era muito lento, não batia com ímpeto. Dividíamos o mesmo teclado, acredita. A luta do século travada entre dois jovens de ombros dados e braços enlaçados e frementes por sobre o teclado do computador. Ele com o alfabeto, eu com os Delete, End, Page Down, etc. Bill Gates era sinônimo para homem rico. Ele deve ter tido um Tamagotchi. A seleção brasileira perdia. Zagallo tinha Ronaldo, Rivaldo, Bebeto, Roberto Carlos e Dunga. Faltava-lhe Vavá, Didi, Garrincha e Pelé. As pernas de Marisa Orth me chamavam a atenção. Achávamos que o mundo acabaria no ano dois mil. Schwarzenegger protagonizava um filme sobre isso. Erramos por um ano. Surgiu outro em seguida, como podemos constatar. Como nos classificará a história? A corveia nos será ensinada, não há dúvidas. Digo ''nos'', porque voltaremos com certeza, por isso levarei comigo para o túmulo minha tesoura metálica dobrável, poderei retornar asseado e belo, e, na pior das hipóteses, a tesourinha, caso me enterrem antes da hora, poderá desempenhar na minha vida um papel mais notório.