Tábula rasa
Melinda Williams lia sobre a campanha maciça nos anos trinta para popularizar o consumo do cigarro, torná-lo símbolo de elegância e estilo. Na televisão a sua frente, um comercial cinematográfico dos cigarros Malboro. Em sua mão, entre os dedos entrecruzados, um cigarro enfrentava fumegante a sua meia-vida. Perscrutava-o agora, atentamente, sob vários ângulos. Não dava atenção ao belo cowboy que assoprava contra as brancas nuvens a fumaça requintada do seu tabaco. No aparelho de som a faixa seguinte era Cigarettes & Alcohol. Melinda não esperou muito, levantou-se da cama e desligou o aparelho. Para seu horror, na televisão Humphrey Bogart, tomando o lugar do Malboro Man, baforejava seu vício charmoso em cima de Lauren Bacall, que lhe devolvia o charme com mais baforejos cinzentos.
O aparelho de som desligado. A televisão também. O cigarro, no entanto, continuava entre seus dedos retorcidos e tesos. Sentia-se angustiada. Deveria parar de ler. Melinda, com tremores pelo corpo, acaba por meter o cigarro na boca, dobra os joelhos entregues sobre a cama, e se acalma. Alívio. Campanhas maciças: será? Pensa no cão adestrado do vizinho. Pensa no seu próprio cão: espalhafatoso, teimoso e porco. Pensa: o meu é livre, afinal, tem a personalidade ilibada. Ela, que admirava a segurança e imponência do cão vizinho, passa a desprezá-lo. Agora ama mais o seu próprio cão. Pensa consigo se ela própria assemelha-se mais ao cão do vizinho ou ao seu. Após algumas tragadas distraídas, pensa ter um pouco dos dois. Seus pais lhe diriam que tem mais do porco.
Olhava para os pés, as botas de cano curto e fivela. Pensava na morte recente de Kurt Cobain. Ele também fumava. Não foi o cigarro que o matou, no entanto. Imaginou-o por instantes tragando a própria espingarda, enquanto engolia absorta a fumaça do próprio cigarro. Pensava que, se a campanha pró-cigarro foi um sucesso, e eles, seja lá quem eles sejam, e eles o sabem bem, o que mais nos foi posto goela abaixo? Guerras? Campanhas nacionalistas e xenofóbicas que nos fazem odiar o estrangeiro com o qual entraremos em guerra daqui a dez anos sem o saber? A imprensa, idólatra e iconoclasta. Preto e branco. O cigarro na boca de Bacall. O que é nosso cinema, conscientemente ou não, para os nossos vizinhos mexicanos? Para os centro e sul americanos? Começam os latinos, de língua latina, a pensar, sem o perceber, os adjetivos antes dos substantivos... Qual o objetivo? Domínio? Nova ordem mundial, como colocou George H. W. Bush na TV?
Melinda apaga o toco de cigarro no disquete caído no chão, e acende outro. Engenharia social, pensa. Crianças. Crianças são tábulas semi rasas, impressionáveis, no sentido mais químico da palavra. Crianças, ao final do século XIX, passaram a ser tratatas como entidades sagradas. A anedota do sequestrador no avião cheio de crianças justifica todos os sacrifícios e atrocidades... Melinda liga a televisão, precisa se distrair.
Um amigo seu entra pela janela. Jeremy Cornell. Quero ser pai, ele lhe diz antes de qualquer outra palavra. Você é um deles, Melinda pergunta. Quem, indaga Jeremy, tirando-lhe o cigarro da boca para acender o seu.
M: Sabia que fumamos por que alguém em alguma sala mal iluminada, na ponta de uma mesa redonda, rodeada de silhuetas pensantes, quis que fumassemos?
J: Uau, gostei da tua visão do mastermind. Sim, todo mundo sabe. Somos peças, cara. Playmobils orgânicos, esperando pelos nossos heróis de plástico que nunca virão. Isso é niilismo?
M: Niilismo vulgar.
J: O que quer dizer com vulgar?
M: Que não é como Wittgenstein ou Heidegger. É só um marasmo depressivo, puramente fisiológico.
J: Você lê as coisas erradas. Essa coisa metafísica nunca ajudou ninguém. É um onanismo intelectual.
M: O onanismo corporal ajuda muita gente, por que o intelectual não o faria?
J: 'tá certo.
M: Quando vai me devolver a Ascensão de Prometeu?
J: Quando eu terminar a leitura. Hoje faz um ano que River Phoenix morreu. Grande cara.
M: Sim. Eu pensei nisso mais cedo. Fumei um maço inteiro por ele. Agora sinto que minha homenagem não partiu de mim, que alguém me roubou alguma coisa, que fiz o que se esperava de mim, e eu odeio isso.
J: Do que 'cê 'tá falando?
M: Engenheria social.