França, 1938

- Marie, venha para cá!

Marie era uma menina. Curiosa menina. Filha de Margot, era a mais nova. Irmã de Remy e Clémence, a mais velha dos irmãos. Ela própria, Marie, um dia se tornaria mãe.

Então era apenas menina. Corria agora para a cama, onde sua mãe estivera há pouco agarrada aos seus irmãos, um em cada braço seu. Olhava para Margot, sua mãe, sentada à beirada da cama, como que para uma amiguinha mais velha. Margot tinha vinte e sete anos. De olhares arregalados, as olheiras lhe realçavam o azul dos olhos. Parecia possuir um sentido a mais, Marie se lembraria anos depois, lembrando-se dos dedos fortes da mãe lhe agarrando os ombros, a rigidez do seu corpo sendo transmitida para os seus pequeninos membros, a cabeça acompanhando com dificuldade o olhar que se colocava no teto. Quando sua mãe se punha assim, lembrava-se, tudo dentro daquele quarto perdia então os movimentos. Clémence, uma cópia impressa da mãe, agarrava os lençois brancos até descobrir a cama, os pés descalços torciam-se quase ao ponto da câimbra, mal que ela nunca sentiria. Remy, sempre revoltoso e anárquico, ficava como que enfeitiçado, de olhos fixos à nuca da mãe, tentando lhe descobrir os pensamentos.

- Clémence, as máscaras. As máscaras, Clémence!

Clémence desaparecia debaixo da grande cama, e retornava com àquelas terríveis máscaras nos braços. Máscaras de gás. Tínham consigo apenas três delas: uma para Remy, uma para Clémence, e uma para Marie. Todos mascarados, Margot ia ao banheiro, pé ante pé, e trazia consigo uma toalha umedecida com que protegia o rosto. Aguardavam alguma coisa, todos juntos, deitados e abraçados juntos naquela grande cama. Mascarados, atemorizados, os ouvidos os mais atentos.

Era um quadro de horror. Uma mãe com uma toalha sobre o rosto, agarrada a seus filhos todos com máscaras de gás. Margot e Clémence sem sapatos, a sola dos pés sujos, desenhavam figuras agourentas no lençol branco. Não sentiam mais o cheiro do suor que por certo impregnava o quarto. Quando um avião passava por sobre suas cabeças era como morrer por instantes, ao menos assim imaginavam que seria. O som de um avião, e suas vidas sendo levadas em suas asas para algum lugar.

Clémence ouvira falar de lugares que seriam reservados aos bons depois da morte, talvez por essa razão tentara se envenenar com veneno de rato anos atrás na casa de campo dos seus tios. Clémence, como Margot, perdera um pedaço de si nalguma vereda estreita de sua vida, mas Margot logo tão cedo teve Clémence, e por certo uma parte de si recuperara, e Clémence, por sua vez, algum dia teria Margot, e mais tarde Remy, depois teria a mais nova, sua querida e curiosa Marie.

Com a invasão que haveriam de sofrer dois anos depois, perderiam Clémence. Marie lembra da sua mãozinha no comprido casaco da irmã enquanto eram escoltadas pelas ruas. Margot não teve forças para protegê-la, afinal de contas sua filha, não era um cabo de guerra, não deveria ser disputada no meio da rua entre uma mulher só e homens armados que cuspiam sua língua em cima deles. Remy, revoltoso e anárquico, tornar-se-ia pintor, um artista de cores escuras, abstrato, não teria alguma vez a mesma alegria que prometera dar de presente ao mundo na sua infância. Margot, depois da guerra, iria para a velha casa de campo do irmão. Lá, em 26 de julho de 1957, realizou o que Clémence não conseguira.

A noite que Marie guarda na memória, ainda que tenebrosa, é a noite das máscaras de gás, o olhar de Clémence à janela, o alarme de ataque. Passado o medo, passada a rigidez, idos os feros aviões, Remy, como um gato, começa a brincar sozinho pelo quarto, Clémence vai até a janela (''Cuidado, Clémence, não dê nas vistas, dizia-lhe nossa mãe), Marie continuava na cama com Margot, a toalha seca sobre o peito jovem que agora respirava tranquilo.

- Queres ouvir um poema, minha mãe? - pergunta Clémence, de pé à janela, a mão destemida, insinuando-se para o mundo no parapeito.

Margot nada lhe diz, não por qualquer sentimento de censura, costumava se ausentar deles, sempre assim, quando tudo se punha tranquilo. Logo voltaria para os filhos, egressa de lugar algum.

- Gostas de poesia, Marie? - Clémence insiste.

- Sim, sim. - diz-lhe a irmãzinha.

Prepara-se ela, ajeita o corpo, como que diante de um grande público. Olha para Margot, que não se move, os olhos fixos no teto, depois para a pequena irmã, quando sorri e declama:

- Como te pões longe, paraíso perfumado!

Além as verdejantes delícias dos amores infantis,

Os campos, as canções, os beijos, os buquês,

Os vibrantes violinos por detrás das colinas...*

Soava então o alarme, interrompendo-a, trazendo de volta Margot, engolindo com o seu terror sonoro de muitas imagens e muitos medos Baudelaire e a voz de Clémence. Remy, a máscara com a qual brincava posta no rosto, corre e salta para a cama. Margot, tomada de susto, confusa, protege o rosto com a toalha seca, enquanto ajeita a máscara da pequena no rosto. Clémence, ainda de pé, com o rosto descoberto, mantinha-se próxima à janela, enquanto Margot lhe gritava da cama, sem lhe virar o rosto, apertando os filhos contra si:

- Clémence, venha para cá! Venha para cá!

* tradução livre de um trecho de Moesta et errabunda de Charles Baudelaire: comme vous êtes loin, paradis parfumé!/ mais le vert paradis des amours enfantines,/ les courses, les chansons, les baisers, les bouquets/ les violons vibrant derrière les colines.