Athanasia
Meu bom rapaz, eu estava em uma cafeteria em Roma quando acompanhei pela televisão a queda do Muro de Berlim. Estudiosos mal-intencionados afirmam hoje ser o Nacional-Socialismo uma vertente da ala esquerda, tudo porque o maldito partido, a fim de atrair o povo, a massa e a classe operária, ciente do imenso poder que a última demonstrara na então União Soviética, utilizou-se do evocativo ''socialismo'' para compor o seu nome. Sabes tu como se chamava a Alemanha Oriental? República Democrática Alemã! Que república ela era! Quão democrática era ela! Médicos, funcionários públicos, todos ex-nazistas... A Stasi! Como poderia ter sido bom? Eu estava na Inglaterra, vi Winston Churchill perder as eleições. Para os ingleses, ele foi bom para guardá-los, quando as coisas ficaram difíceis, mas não o seria para guiá-los. Estive à mesa com Ouspensky no Stray Dog Café, não nos falamos muito, ele não era de falar. Era 1911. Eu li nos jornais sobre a expedição Nimrod. O que era incógnito tornava-se então corrente. El mundo es poco, não é? Ouvi pelas ruas de Paris homens agitados falarem sobre a prisão de Mikhail Bakunin. Eu não era político na época. Deixei-o de ser depois que Stálin traiu a Espanha, depois das gulags, tive recaídas, como todo o velho entusiasta, mas o deixei de ser definitivamente depois do que ocorreu na Praça da Paz Celestial. Faz seis anos agora. Ah, Bakunin, acreditava na liberdade. Na Rússia uma senhora contava aos homens que lhe compunham a taverna, uma história sobre um príncipe e uma princesa que se apaixonaram um pelo outro enquanto fugiam montados às costas de um grande lobo. Eu estava lá quando carregaram O Incorruptível para a guilhotina. Vi a liberdade correr em bandos pelas ruas de Paris, atacando homens velhos, lançando-os rua abaixo, molestando senhoras e meninas, um dos malditos quebrou o meu braço. Delinquentes. Fiz parte da Companhia Holandesa das Índias Ocidentais, vi o mar aberto, o oceano. Não, não fui às Américas, embora já tivesse estado lá. El tiempo es poco, até para alguém como eu. Em um ateliê de Veneza conheci um homem curioso. Um século depois descobri que era Verrocchio. Será que cruzei com Leonardo? Passei por uma ruela onde à sombra se dissimulava o filho de Rodrigo? Estudei música em Reims. Invejaria depois Giacomo Facco, pelo quê me arrependo hoje. Não mereces o talento que tens, eu lhe disse à época. Não mereces o tempo que tens, Facco me respondeu. Estive à mesa com uma família inglesa quando homens e mulheres, transfigurados pelo medo e pela doença, muravam-nos dentro de casa. Minha filha não venceria a primeira noite, e sobre aquela mesa veríamos seu corpo tomado pela doença apodrecer. Logo iriam os outros, um a um, deixando-me lá sozinho. Foi quando descobri que nem a falta de víveres e água me mataria. Vi de perto quando um império se dobrou para um único homem, e quando uma mulher o matou; em um lugar secreto, encenei um personagem de Sêneca, nas muitas homenagens que lhe foram rendidas em segredo após sua morte; perdi os trinta e dois anos de Alexandre, mas estive com os orfistas; também não vi nascer as filosofias, mas fingi ser um deus numa torre babilônica, estava escuro, e ela nunca estivera com um homem, foi quando fui mais feliz; bebi da água cristalina dos Etíopes, embora ali eu já fosse quem eu sou; as pirâmides foram obras dos homens, meu braço era forte então; marquei o interior de uma caverna com minhas mãos, elas ainda estão lá, as marcas, as mãos, nunca tive coragem de voltar... Minhas lembranças agora se tornam vagas. Lembro-me do mar aberto, de mirá-lo por horas, da areia quente e branca, lembro-me de sentir o presente sem conhecer a palavra, lembro-me de não ter memórias.