As impressões de uma jovem paciente
Asperidade. As finíssimas fibras da madeira rebelde atacavam-lhe os dedos exploradores que percorriam a extensão da moldura da janela. Três quartos de viagem e uma felpa.
Eu te avisei, diz uma voz, cuidado com essa janela.
A voz lhe era familiar. Masculina. Leves hesitações entre as palavras, arranjos frouxos entre as sílabas, mudanças súbitas no seu volume lhe informavam que naquele homem, que era jovem, faltava confiança. O filtro simbólico em seu cérebro trabalhava com lentidão, o que lhe permitia ser cortês e querido pelos outros, permitindo-lhe subtrair possíveis equívocos no âmbito social, ao mesmo tempo que lhe retirava qualquer capacidade de persuasão, poder e sensualidade. Um ponto preto no meio de um círculo avermelhado aninhava-se na sua carne branca.
Tens uma agulha, ela pergunta ao homem
Não seria melhor uma pinça, retorque ele
O homem, jovem, vestia um jaleco branco que não lhe caia bem. Era-lhe muito grande, muito frio, muito profissional, e ele não era profissional. Um efebo. Cheirava a giz. A pele branca pedia o preto, a condescendência, o Parkinson e o Alzheimer, o idealismo, as cavernas. Estava tenso. Ora lhe sorria, ora se punha tenso.
Vou te buscar uma pinça, Não vás embora, mais tarde peço às
enfermeiras, gosto da tua companhia, os outros... olham-me como se
eu fosse um animal, Ah, e como eu te olho, Por que me perguntas
coisas cuja resposta tu não estás condicionado a ouvir, O que queres
dizer, Vais perder a espontaneidade, vais se esconder atrás de
máscaras, vais me obrigar a encará-las, e serás outro, e eu terei de
fingir que te acompanho na tua mentira, e eu não gosto de teatro, por
isso estou nesta sala.
Agora ele se cala. Ela pode lhe ver o maquinário mental trabalhando, trabalhando, superaquecendo, e, por fim, subitamente, rendendo-se silencioso. Ele toma a caneta da mesa, que não usou, e passa a apalpá-la na mão esquerda; pressiona-lhe o botão, empurra-o, e o traz de volta, empurra-o, e o traz de volta. A mão direita, leva-a para o colo, um leve tremor lhe trespassa o braço, que se ergue novamente, e a moça, observando tudo, deixa escapar um riso agudo que logo abafa com as mãos.
Nosso tempo está acabando, diz ele, o que tens para me dizer, O que
gostarias de apalpar, doutor, Assim não teremos como conversar.
As suas hesitações mais longas, os arranjos mais frouxos, ele, acuado, levanta-se, colocando-se próximo a saída. Ela, fingindo vergonha, dá-lhe as costas, põe-se sentada à beirada da mesa e questiona
Achei que nós, pobres pacientes, deveríamos dizer a primeira coisa
que se passa pelas nossas confusas cabeças, doutor, estou errada
Como está o dedo, diz ele, mudando de assunto
Tu sabes, acho que não sobreviverei a esta noite, começa ela, sabes por que? Tenho uma maldita felpa no meu dedo, ele coça e me perturba, doutor. Sabes de outra coisa? Meu dedo não é a única coisa que coça e me perturba, eu...
Por que foges de quem tenta te ajudar, interpela o jovem doutor
Quem está perto da saída não sou eu, ela, de bruços, estendida sobre a mesa, aponta para a porta, os dedos moles, observando-lhe de faces viradas. Emprestas-me a caneta, ela continua, e lhe recebendo afirmativas, toma da caneta e do bloco sobre a mesa, começa a escrever.
Meu diagnóstico, o senhor é neurastênico, doutor, diz ela, entregando-lhe o bloco com a palavra NEURASTENIA escrita em letras emendadas, e uma receita para a cura que constrangeria o leitor ou a leitora.
O jovem médico sorri, faz comentários que, condescendentes, pairam sobre o ar engasgado da pequena sala, agarram-se a pele da moça, entrando-lhe nas narinas. Faltava-lhe inteligência para ser digno de estar materializado dentro daquela sala. Com que petulância passava ele a mão sobre um motejo que o desrespeitava como homem e como especialista? Muito coração, e pouco sangue, por isso lhe faltava cor. Achava que ela lhe fazia carinhos? Que lhe queria a amizade? Por que ele não a via como ela o vê? Nu, nu, nu, e desprezível. Morta, os patologistas saberão de tudo. Viva... viva, um mistério.