O sonho de Ricardo Alves da Silva
Pela manhã Ricardo Alves da Silva sonhara estar em um labirinto. Um curto corredor, que a frente sofria uma bifurcação, deslocando-se para a direita e para a esquerda. Um dos caminhos lhe proporcionava rigorosa dor, o outro lhe fornecia alimento. Centenas de vezes seguiu ele pelo caminho da dor, até que, familiarizando-se ao meio, ele tomou o caminho certo. Após tomar o caminho certo por diversas vezes, uma pinça alçou-o para uma placa de Petri, e lhe foi inserido um bisturi que lhe separou a cabeça do resto do corpo.
Ricardo Alvez da Silva, sem cabeça, é posicionado de volta ao curto corredor do labirinto. De volta ao ponto de partida, ele novamente toma o caminho certo. Aos poucos, sua cabeça começa a crescer, e aquilo que se poderia chamar cérebro torna a se caracterizar como outrora. Com o seu corpo inteiro, com as células nervosas reconstituídas, Ricardo Alves da Silva novamente passa a tomar o caminho da dor, e o faz por centenas de vezes, até familiarizar-se ao meio, perder novamente a cabeça, e voltar para o frio labirinto.
Acordado pelo despertador, torna-se homem, ao menos lhe parece. Corre para vestir-se. Corre para tomar o café da manhã. Corre para o ônibus, que não corre, e o irrita, pois está atrasado, e tem horários, e responsabilidades, e patrões e refalsados colegas, e precisa de ganhar dinheiro, precisa de comer, para ser acordado pelo despertador, e correr, correr, e correr.
Ao intervalo, conta o sonho recorrente ao colega, seu amigo, assim lhe parece. O amigo lhe diz que não gosta de sonhos, que procura não sonhar, ou melhor, que sonha, sim, mas acordado, pois assim tem o controle das coisas. Sonha com dinheiro, mulheres e viagens. Não sonha com labirintos e pinças. Procure alguém que entenda de sonhos, sei lá, ele lhe diz, uma vidente, búzios, tarô, horóscopos, jornais, revistas para adolescentes, descanse mais, transe mais, pense menos, tenho que voltar ao meu posto.
Finda a labuta, vai a escola. O filho o aguarda. Ricardo conta o sonho ao filho, que para e pensa, enquanto rói as unhas dos dedos gordos. Pai, o senhor era cego no sonho? Rastejava? A dor provinha de choques elétricos? O bisturi era manejado por uma mão envolta em luvas brancas descartáveis? Havia luzes fortes, e pessoas com jalecos brancos que conversavam entre si e faziam anotações? Pai, meu pai, papai, o senhor era uma minhoca. Ricardo, mudo, por assim dizer, pergunta ao filho se ele tem a certeza. O filho responde que sim. O pai pergunta então ao filho o que o sonho significa. O filho lhe responde que não sabe. Minhocas, ele diz, é tudo o que sei.
Em casa, a mulher não lhe abre a porta. Descobriu coisas, coisas imundas, coisas infames, inomináveis. Chama-lhe rato reiteradas vezes. Rato, rato, rato. Minhoca, mãe, diz o filho. Rato, rato, rato. Minhoca, é minhoca. Os nervos todos, eventualmente se acalmam. Na cama, Ricardo, não mais minhoca, não mais rato, não talvez mais homem, e sim marido, conta o sonho à mulher. Ah, minhoca, ela diz, agora compreendo, não, se está num labirinto, é um rato, como eu sempre lhe digo: rato!
Acordado pelo despertador, ele, Ricardo, mais uma vez transfigura-se em homem. Hoje está de folga, mas vai cedo à academia. Corre para vestir-se. Corre para tomar o café da manhã. Corre à academia. Corre até a esteira, e corre, corre, corre. Vê um homem de sua idade musculoso, ao lado de uma mulher também musculosa, a um cartaz à saída, e isso lhe dá ânimo, e ele corre para casa, tem compromissos, tomará um banho, trocará de roupas, e o relógio, com a foice e a ampulheta pendendo das mãos, informar-lhe-á que não corre o bastante, e os alarmes dos despertadores lhe enviarão mensagens de emergência, hormônios se agitarão dentro dele, e estes enviarão recados para o corpo inteiro, e suará, e correrá, nunca a tempo, inferno.
À noite, escuta, como um jovem iônio à pítia, homens de jalecos brancos na televisão lhe revelarem as fórmulas mágicas para a manutenção da saúde, física e mental. Espera que falem de sonhos, em vão. Os intervalos comerciais se refletem em seus olhos, carros enormes e reluzentes deslizando sobre vistas toscas e belas. Sente um vazio se abrir no peito, ao mesmo tempo em que se imagina por detrás do volante. Imagina uma mulher ao seu lado, diferente da sua. Imagina filhos adultos no banco de trás, diferente do seu. O protagonista pobre nas novelas descobre que, na verdade, é rico. Se é virtuoso, como poderia ter ele nascido pobre? Ricardo Alvez da Silva fala de si para si, Ficção. Se eu quiser me tornar rico, pensa ele, tenho de trabalhar muito. Correr. Correr. Correr.
Mais tarde, chegam amigos, seus e da mulher. Respeitaram os números e as convenções sociais, não se atrasaram. Após muito comerem, beberem, e rirem, Ricardo, sinistro, conta-lhes seu recorrente sonho. Seus amigos, um a um, todos juntos, elaboraram teorias, nenhuma tão exata quanto a do filho. Desanimado, Ricardo vai a cozinha buscar o sorvete. Um amigo seu, de anos, todo doce e gelado agora, pergunta-lhe da vida: Ricardo lhe fala do trabalho contínuo e intenso. Pergunta-lhe da saúde: Ricardo lhe fala dos exames periódicos que tem feito, e da esteira na qual se punha a correr toda a semana. Pergunta-lhe das dores: Ricardo lhe fala que não consegue evitá-las, mas sonha que um dia achará o caminho certo. Pergunta-lhe dos caminhos certos: Ricardo lhe diz que o caminho certo é a felicidade. Pergunta-lhe da esposa, que se afasta da mesa, aos sussuros: Ricardo lhe diz que é um rato.
Acordado pelo despertador, o rato torna-se Ricardo Alvez da Silva. Agora o vemos de cima: corre para vestir-se. Ali o banheiro, para ali ele vai. Lá a cozinha, lá vai ele. Corre para preparar o café da manhã. Ele é veloz, está cada vez melhor. Desce as escadas, cumprimenta um, cumprimenta outro. À rua, para ao sinal vermelho, ao verde, ele segue adiante. Lá vai ele, vemos sua cabecinha se movendo. Vamos analizar outro: esta é Lígia Albuquerque, veja como salta da cama...