Hortênsias negras
Dia da Água (Suiyoubi)
Hoje cedo fui a Srta. Morioka buscar algumas sementes de flores. A Sra. Terakado mas pediu, última vez que estive em sua casa. Bara e Ajisai. Que cores receberão as últimas da natureza? Ela não tem um jardineiro, mal pode pagar a mim; incumbiu-me de plantá-las, eu que lido com retas e semirretas no meu laptop; a Sra. Terakado não conhece o AutoCAD, mas sabe, estando comigo por alguns minutos, em nossa primeira entrevista, que eu não reconheceria o cheiro da grama cortada com uma venda nos olhos, nem que minha vida dependesse disso. Foi o que ela me disse quando nos conhecemos; eu só consegui sorrir e dizer que ela estava certa; minha mãe e ela se dariam bem.
Com as férias da faculdade posso pensar um pouco mais em mim, na minha construção. Alimentar o Id, como diria Mayu. Pedi a ela que me gravasse em um CD umas músicas. Ela me disse que eu precisava parar de ouvir Pigmalion e La Bohème, que era deprimente e anacronístico. Boards of Canada, Brian Eno e Marylin Manson vieram embalados e digitalizados. Satisfeitos os meus ouvidos, e o resto? Só consigo pensar em projetos. Estou trabalhando em um projeto, tem sido minha desculpa favorita. Na verdade, não estou trabalhando em coisa alguma, mas tenho evitado com isso investidas e assaltos, femininos e masculinos. Falando assim, até parece que sou uma deusa. Tenho plena consciência de que é a minha disponibilidade que me torna atraente, como um objeto numa loja: sempre o vejo à mostra, que há com ele, é agradável aos olhos, por que ninguém o comprou ainda?
Dia da Árvore (Mokuyoubi)
Recebi um telefonema da minha mãe hoje, meu silencioso pai trocou uns mimos comigo também. Eles desejam me ver. Ainda não combinamos quem visitará quem. O destino está em aberto, eu lhes disse, para procrastinar uma decisão que agora me seria súbita. Mayu também me ligou, queria que saíssemos, eu lhe disse que não estava bem. Tenho lhe dito isso tantas vezes. Acho que nossa amizade se tem debilitado; eu morreria por ela, e sei que ela o faria também por mim, mas também sei que essas ligações uma hora vão parar, que ela vai se cansar, como já acontecera, como sempre acontece. Não tenho disposição para encontros sociais, exigem uma energia que me falta. Muita energia.
Um rapaz que não conheço me mandou uma solicitação de amizade: eu não aceitei. Tenho pensado em excluir minha conta, de qualquer modo. Uma, entre tantas coisas na minha vida, que fiz porque os outros fizeram. Um piloto automático que já dura anos. Tenho me dado conta disso depois dos meus encontros com a Sra. Terakado. Ela parece alheia às coisas do mundo, mas consegue vê-lo melhor do que eu. Se eu lhe falasse do mundo, ela provavelmente diria
O seu mundo, ou o meu? Se o seu, qual deles; se o meu, qual deles?
Sou imenso. Contenho multidões. Quem disse isso? A Sra. Terakado talvez o saiba.
Dia do Ouro (Kin’youbi)
Mayu veio me ver hoje. Contou-me das paqueras, das amizades novas e das amizades velhas, ouvimos Peacock Tail juntas um milhão de vezes, comemos, foi bom. Ela me ajudou a preparar as coisas para ver a Sra. Terakado. Mayu prometeu me levar até a estação Kokura pela manhã.
Hoje aconteceu uma coisa estranha. Aquele rapaz que me mandara uma solicitação de amizade, hoje me mandou novamente. O perfil dele é privado como o meu. Parece um rapaz comum, mas nunca o vi. Isso me assustou: resolvi não negar sua solicitação, mas também não a aceitei. Entrei no perfil de Mayu e o procurei em suas amizades, mas não o achei por lá.
Dia da Terra (Doyoubi)
Walt Whitman, disse-me a Sra. Terakado.
Plantamos juntas as sementes. A Sra. Terakado as plantou, na verdade. Eu fiquei de pé ao seu lado, alcançando-lhe coisas, basicamente, e observando o que ela fazia, ouvindo-lhe o que me contava. Gostaria que fossem azuis, ela me disse, não conheço o meu solo, Ajisai dizem muito sobre o solo.
Sra. Terakado tinha uma televisão, que nunca ligava. Presente da sua filha, que lhe dizia que precisava de distração. Distrair-me do fato de ela e seus irmãos não estarem aqui, dizia ela, mais para si do que para mim. Ela me contou que a ligou uma vez durante a noite, há alguns anos, sentiu o aconchego das vozes que enchiam a casa, um espectro de calor, e teve medo de acostumar-se à companhia de vozes artificiais, de pessoas que não conhecia, e de quem acabaria não conseguindo viver sem. O controle remoto, ela nem sabia onde estava. Ela me oferecia tudo o que havia na casa, exceto a liberdade de mexer naquele aparelho que já acumulava pó sobre a estante.
A Sra. Terakado me acordou durante a noite. Estava com os cabelos molhados de suor, e tremiam suas mãos. Sonhara um sonho ruim.
Ela se lembrava de sair para o seu jardim, encontrar a filha
sorrindo, que se vestia como eu, o mesmo corte de cabelo. A filha
apontava sorrindo para as hortênsias, fartas e negras, e dizia:
minha mãe, minha senhora, veja para onde foi todo o
ressentimento.
A Sra. Terakado, logo depois, após me contar o sonho, disse-me que plantaria somente as rosas, foi até o jardim, e abriu buracos onde plantáramos as Ajisai.
Dia do Sol (Nichiyoubi)
Recebi umas mensagens de áudio de Mayu à tarde. Eu evitava o meu celular quando na casa da Sra. Terakado, ela parecia não gostar disso. Mayu contou-me umas banalidades, depois me disse que adicionou como amigo um rapaz que após trocar duas palavras com ela começou a perguntar por mim. Ela me perguntou se eu o conhecia. Eu lhe mandei um áudio dizendo que lhe contaria tudo quando retornasse. A Sra. Terakado, que parecia estar em todos os lugares da casa, ouvira o áudio de Mayu e me fez perguntas sobre o rapaz. A ela contei tudo. A Sra. Terakado me disse para ter cuidado. À noite, ela me ''ajudou'' com as maletas e sacolas, não me deixou tocar em quase nada, como fizera quando plantámos as sementes.
Dia da Lua (Getsuyoubi)
As malas e as bolsas continuam aos pés da cama. Estou sem forças hoje. Deitada, olhando para o teto que não me dizia palavra, resolvi mandar uma mensagem de áudio para Mayu contando sobre o episódio com o rapaz misterioso. Esperei algum tempo pela sua resposta, mas ela nem chegara a visualizar a mensagem. Resolvi desligar todas as luzes acesas pela casa, inclusive a televisão que, ao contrário da Sra. Terakado, possuía vozes que me agradavam quando sozinha, e fui nua para um banho quente no escuro. Mayu chamava isso de fantasia intrauterina. Melhor que chupar bicos de travesseiros, eu lhe dizia sempre.
Enquanto me secava ouvia a notificação de uma mensagem no meu celular. Mayu. Um áudio com mais de oito minutos.
Minhas pernas quase me abandonaram ao chão quando a voz que devia ser a voz de Mayu era de outra pessoa.
Quero te encontrar...
Por que você não fala comigo...
Estou apaixonado por você...
Tua amiga é um saco...
Ela não te entende...
Peguei seu celular emprestado...
Você não gosta de mim?...
Precisava falar com você...
As frases se repetiam ao longo de oito minutos que nunca terminavam. Eu não queria ter de escutar até o fim, mas precisava. Como ele tinha o celular dela? Será que ela estava bem. Tentei contactá-la pelas redes sociais, não obtive resposta.
Uma nova notificação de mensagem. Minhas mãos tremiam. A antiga, o áudio com oito minutos, havia sido apagada. Escutei o novo, e era a voz de Mayu.
Ela e uns amigos haviam saído, o rapaz fora convidado por ela, disse
que parecia gente boa, e achava que era meu amigo. Da casa de
um deles, foram a uma festa. Lá, o rapaz dera uma desculpa
qualquer, que ela não entendeu bem, e pediu seu celular para fazer
uma ligação. Disse que ia sair e logo voltava. Ela ficou contrariada,
mas acabou deixando, o rapaz estava ansioso, pareceu-lhe algo
como uma emergência. Ele se sumiu por uma boa meia hora. Quando
Mayu estava se decidindo a ir atrás dele, ele retorna, para
entregar-lhe o celular, balbuciar coisa nenhuma e desaparecer outra
vez.
Dia do Fogo (Kayoubi)
Convivendo com a Sra. Terakado consegui, eu acredito, ao menos em parte, entender a razão de seus filhos lhe serem ausentes. É difícil não ser absorvido por ela, pela sua presença sempre omnisciente, seus olhos, seus ouvidos sempre atentos a tudo. Consegui entender isso da última vez que estive com ela, eu estava então com os pensamentos voando longe, e ela, apercebendo-se disso, logo me trazia de volta para junto de si. Senti raiva da sua invasão, do seu controle, mas não fosse isso, não fosse ela ser assim, ela não estaria perto para ouvir o áudio de Mayu a respeito do rapaz, e não teria, preocupada comigo, com ou sem razão, posto sob as minhas roupas uma espécie de faca, que descobri depois ser um Tanto, uma ferramenta usada há muito para o combate, e também para o Seppuku.
O rapaz que me perseguia, que disse chamar-se Shinrikyo, foi o último a segurar-lhe o cabo contra si próprio. Ele me abordara na portaria, tinha algo consigo que dizia ser ácido, e subiu comigo até o meu apartamento. Houve declarações, juras e súplicas de sua parte. Eu não lhe dizia nada, atemorizada como estava. Ele começou a quebrar as coisas, deu um pontapé nas maletas perto da minha cama; uma delas veio a se abrir, eu notaria depois. Ele me tomou com violência perto da cama, precipitou-se sobre mim, e caímos nela juntos. Rolando o meu corpo, com repulsão e desequilíbrio, para o lado em que as maletas estavam jogadas, vi o brilho da lâmina no meio das minhas roupas escuras.
Lembro de segurar-lhe o cabo, e do corpo dele vindo novamente para cima de mim, engolindo o meu quarto, engolindo o meu mundo, engolindo a tudo, inclusive a Tanto da Sra. Terakado, que ele, que para mim então tornava-se pequeno, débil e magro, não tinha forças para remover do próprio corpo.
Meus pais, cientes do trauma, vem me ver. Decidiu-se o destino, disse-lhes ao telefone. Ao menos por enquanto, pensei comigo.